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Um comboio de aprender

Estação de Comboio de Braga, 8h20 da manhã, dia 15 de janeiro de 2018. Uma garoa fina trazia os meus amigos da Universidade do Minho, que foram chegando, pingando, aos poucos. Logo já havia um círculo, com risadas, barulho e brincadeiras. Não fosse pela idade, poderíamos dizer que eram miúdos, indo a alguma excursão, para alguma atividade fora da escola. O Motivo? Uma visita para conhecer, mais ao Norte, a cidade de Viana do Castelo, uma iniciativa e realização do nosso amigo de sala, Adriano Ferreira Borges.

O objectivo inicial do passeio era conhecer a Escola de Hotelaria e Turismo (http://escolas.turismodeportugal.pt/) e em seguida visitar as instalações da Associação Cultural Ao Norte (www.ao-norte.com). E foi gratificante perceber que tivemos bem mais que isso, mesmo sem apelar para a ementa requintada do almoço, que veio até com flor comestível.

 

 

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Chegada a Viana do Castelo

De volta ao prato principal, aprender é ver, sentir, tocar, conversar, ouvir… e esse foi o roteiro verdadeiro. Começou quando fui olhar no mapa par ver onde ficava Viana do Castelo, depois conhecer sua tradição marítima, o Forte de Santiago da Barra, o antigo Navio-Hospital Gil Eanes, entre outros. Tão gostoso quanto as bolas de Berlim da famosa Confeitaria do Natário, entre mesas antigas e fotos de Jorge Amado, que tempos atrás andou por ali.

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Na Confeitaria Manuel Natário (onde o agente de turismo e docente da Escola de Hotelaria e Turismo e também do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, Dr. Nuno Barbosa, trocou connosco algumas palavras)

Também fomos muito bem recebidos na Escola de Hotelaria e Turismo, a começar pelo sítio histórico e as instalações, dentro do Castelo de Santiago da Barra. Em seguida tivemos uma palestra com Dr. Miguel Vaz Pinto, que destacou a importância da escola para a região e para o crescente cenário português, nos segmentos de gastronomia e hotelaria (o mais rentável deles). Ele ainda nos contou como lida com o ensino e seus alunos, perspectivas de trabalho, assim como o futuro desse setor tão importante. Da escola sairão muitos chefs famosos e alunos prontos para o trabalho em restauração, pastelaria e hotéis.

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Nós com o Dr. Miguel Vaz Pinto na sala de “show cooking” da Escola de Hotelaria e Turismo de Viana do Castelo.

Nossa fome de conhecimentos foi saciada na sequência, em um belo restaurante da escola, com pessoas acolhedoras e atendimento impecável. A ementa provou que os alunos estão no caminho certo, pois apresentaram refinados ingredientes, além de azeite, vinho tinto e branco, água, entradas, prato principal, sobremesa e café.

Em seguida andamos perto da praia, vendo barcos, a vila de pescadores, passando pela Biblioteca Municipal, a Praça da Liberdade, avistando a ponte Eiffel, com seus 645 metros criada em 1877 pelo famoso Gustave Eiffel (1832 – 1923).

 

Após o almoço visitamos a Associação Cultural Aonorte e fomos recebidos pelo Dr. Rui Ramos.  Foi incrível descobrir tantas iniciativas e tanta programação em um espaço modesto, sem fins lucrativos e com poucos funcionários. Ou seja, a arte está nas ruas, nas salas de cinema, em cursos, escolas, vídeos, palestras, encontros, eventos, ideias e iniciativas. Tanto que a associação se prepara para o seu XVIII encontro de cinema, de 02 a 07 de maio de 2018. O encontro reflete o trabalho que tem sido feito, na promoção de debates entre cinema, literatura, fotografia, exibição de filmes, documentários, premiações e diálogos sobre o olhar e sua relação com o mundo. Dr. Rui explicou o contato da associação com escolas, educadores, alunos e todos os desdobramentos que realizam com as imagens.

 

No fim da tarde andamos um pouco mais, entre igrejas como a Catedral da Sé, passamos por lojas e cafés e pegamos o nosso comboio de volta para Braga, onde tudo começou. Daí percebi, pela empolgação dos meus amigos, que poderíamos mesmo ser confundidos com miúdos, na grande aventura de aprender e descobrir coisas novas! Obrigado Adriano, ao Dr. Miguel e ao Dr. Rui. Obrigado amigos de sala companheiros de jornada, da cultura, comunicação e das artes!

Texto: Marcelo Balbino

Fotografias: Adriano Ferreira Borges

Mestrado de Comunicação, Arte e Cultura 2017/19

Blade Runner – A Nostalgia do Futuro

Em 1968, Philip K. Dick, escritor norte-americano, nascido em Chicago em 1928, escreveria uma obra que viria a tornar-se num dos ícones da literatura de ficção científica, constituindo-se como objecto de culto entre os amantes desse género literário. A obra, intitulada Do Androids Dream Of Electric Sheep? (Sonham os Andróides com Carneiros Eléctricos?), deu origem, em 1982, à estreia de uma produção cinematográfica realizada por Ridley ScottBlade Runner. O filme, ele próprio um caso de sucesso que paulatinamente foi ganhando forma, foi objecto de transposição para várias edições em livro, como é um exemplo a edição em Portugal do livro Blade Runner Perigo Iminente, nº 43 da série de Ficção Científica das edições de bolso da Europa América.

Philip K. Dick insere-se numa corrente literária, algo desprezada, que tem vindo a constituir a base de uma literatura cyberpunk que conta com nomes como William Gibson, cuja obra emblemática Neuromancer é reconhecida como percursora deste movimento. Esta sub-categoria da ficção científica, de que faz parte a obra Do Androids Dream Of Electric Sheep?, lança um olhar fatalista e distópico sobre a interacção entre tecnologia e humanidade, estabelecendo uma relação de causa/efeito no caos que se vai instaurando no caldo social, na dependência desmedida do homem em relação à máquina, na reificação do indivíduo. Assim, deste movimento nasce um olhar niilista, uma cultura cyberpunk distópica que caminha em direcção a um mundo obscuro e sinistro em que a máquina pretende substituir o homem. Nasce um campo aparentemente irreconciliável entre a tecnociência e a religião, entre as visões positivista e metafísica do mundo, acentuando o carácter dualista da nossa sociedade ocidental que, desde Descartes, nos vem apresentando a figura de um demónio maligno. Um monstro que parece ser necessário para uma reconciliação do homem com a Natureza e com o Artifício. Nesta organicidade de todo o humano, somos caracterizados pela complexidade, pelo contraditório. Vivemos na megapolis que caminha para o “futuro negro” e para a decadência. Tomamos consciência da complexidade social, cultural e científica das paisagens dos nossos tempos. Mas a arte cyberpunk é também uma arte moral, preocupada com as imperfeições, as falhas, as duvidosas escolhas éticas.

Philip K. Dick

Entender a literatura de Dick e, posteriormente, o filme Blade Runner, implica conhecer um pouco da história de um escritor que viveu uma vida atribulada, atormentada pela morte da sua irmã gémea, poucos dias (40) após o nascimento, que se torna obsessão durante os anos que o fizeram adulto, fazendo-o estabelecer com ela uma permanente relação espiritual (Sammon, 1996). Philip K. Dick cedo se deixa influenciar pela literatura fantástica, pelos pulp magazines, como são exemplo a Unknown e a Astounding. Frequentou apenas um ano a universidade e foi um autodidacta. A necessidade de subsistência obrigou-o a escrever de uma forma constante. Para tal, socorreu-se das anfetaminas e dos ácidos.  Aumentou a sua produção literária de um modo invulgar, mas viu a factura devolver-lhe graves problemas físicos e emocionais. Uma visão mística mudaria a sua vida. Um fenómeno que nunca conseguiu explicar e que fez com que vivesse duas épocas em simultâneo: o passado (a era do império romano) e o presente. Este facto, que o levaria a escrever uma interminável obra (Exegese), revela-se um dado importante para a compreensão do seu livro Do Androids Dream Of Electric Sheep?. A grande paixão que nutria pela música clássica – patente em Do Androids Dream of Electric Sheep? (grande parte da acção ocorre numa Ópera) – denuncia uma ponte com o passado, quiça uma ponte com a sua irmã. Não raramente a música surge como essa ligação espiritual a alguém que se perde. Curiosamente, Philip K. Dick abraça o passado e o futuro como uma grande ruína que o vai consumindo, contribuindo para uma obra esotérica, enigmática e carregada de simbolismos.

Primeiro número de Unknown (capa por H. W. Scott)

Astounding, Jan 1930

Do Androids Dream Of Electric Sheep? é um trabalho dramático, uma reflexão sobre a metamorfose do indivíduo numa sociedade que caminha para uma saída puramente tecnológica. Uma sociedade cada vez mais híbrida. Esta diversidade que procuramos evidenciar, que temos urgência em denunciar, e que se manifesta e exprime na cibercultura através das figuras pós-humanas – os cyborgs, que em Blade Runner (assumimos aqui o filme de Scott como a incorporação do legado de Dick) são representados pelos replicants Nexus-6. Estas máquinas da cibercultura representam o mesmo papel dos bestiários da Idade Média. Dão a ver o diferente, o exótico, o bárbaro. Dão a vê-lo com o intuito de melhor o domesticarmos. Mas poderemos nós ver um futuro em Blade Runner que possa ser, igualmente, esta re-interpretação do passado, esta urgência em justificar todo o mal que vai sendo deixado para trás?

Philip K. Dick procura diferenciar o ser humano autêntico da máquina reflexiva (andróide). Para ele, andróide é metáfora de pessoa fisiologicamente humana, mas com comportamento desumano. Esta obsessão pelo demente não pode ser dissociada da experiência da 2ª Guerra Mundial. Para Dick, os Nazis eram um grupo demente. Mentes de tal forma emocionalmente defeituosas que a palavra humano não se lhes aplicava. Esta frase, retirada dos diários das SS escritos na Polónia, foram uma importante fonte de perturbação para Philip K. Dick:

We are kept awake at night by the cries of starving children (Sammon, 1996: 16).

Segundo Dick, esta demência alastrar-se-ia a todo o mundo após a 2ª Guerra Mundial, tornando a sociedade cada vez mais virada para a violência e a falta de ética. Para que possamos melhor entender a génese da sua obra Do Androids Dream of Electric Sheep?, deve referir-se que a mesma foi escrita mesmo a meio da Guerra do Vietname.

Roy Batty, um Nexus-6, papel desempenhado por Rutger Hauer

BLADE RUNNER – PERIGO IMINENTE

A adaptação do livro para filme vê os seus primeiros contornos serem desenhados em 1969, um ano após a publicação da obra escrita. Os primeiros interessados foram o realizador Martin Scorsese e o crítico Jay Cocks. Ficaram encantados com as paisagens morais e visuais da narrativa distópica, da mensagem subjacente em cada linha de texto. Contudo, não passou de um namoro que não produziu frutos. Mais tarde, em 1974, Robert Jaffe, filho do californiano Herb Jaffe, CEO da produtora Herb Jaffe Associates, escreve um argumento para adaptar o livro de Dick ao grande ecrã. Depois de Dick o ter lido, a única palava que lhe surgiu foi “horrível”. Após várias tentativas de melhorar o argumento, com a ajuda do próprio escritor, o projecto vê as suas pretensões gorarem-se em 1977. Nesse mesmo ano, um outro homem interessa-se pela obra e começa um trabalho que será o responsável pela produção e realização de Blade Runner, na versão de Ridley Scott. O seu nome é Hampton Fancher.

Hampton Fancher

Apesar da fidelidade inicial de Fancher em relação à obra de Dick, o primeiro guião sofreu numerosas modificações, fruto do reduzido orçamento inicial:

I didn’t really create much of a world [in the initial screenplay]. You could have pretty much taken my first draft and put it on a (theatrical) stage. There weren’t many exterior scenes, there wasn’t much hardware. It was basically a small drama, [one originally projected to be] done for $9 million (Sammon, 1996: 36).

Mais tarde, talvez motivado por profundas preocupações ecológicas, Fancher faz com que argumento vá sofrendo consideráveis alterações, desviando-se da obra original. Destacamos apenas algumas:

  • As cenas passadas em San Francisco transferem-se para Los Angeles
  • O papel de Iran (mulher de Deckard) dilui-se num decréscimo de importância
  • Rachel, a namorada de Deckard, ganha um protagonismo inusitado

UMA VISÃO DISTÓPICA

Nesta visão distópica do futuro, o “Perigo Iminente” é o perigo da replicação. Tudo passa a ser possível num mundo que se vê desprovido de Deus: “Se Deus morreu, então tudo é possível”, anunciava Dostoievsky em Crime e Castigo; em Blade Runner, aparentemente, “Se tudo é possível, então Deus morreu” (Rosa, 2007: 7). Esta forma de religiosidade esteve sempre presente, de alguma forma, na obra de Philip K. Dick. Como acentua Herlander Elias, “(…) há um perigo subentendido no filme, o de uma tecnologia capaz de gerar humanos tão ou mais genuínos que os próprios humanos […], algo que  não ficou resolvido na modernidade, a visão negativa de um futuro, ainda assim romântico (…)” (Elias, 2007).

Deus morre porque Dr. Tyrell (o “pai” dos andróides) é morto pelo líder dos replicants, Roy Batty. E “deus” é a palavra que existe para designar o que existe de mais transcendental (Cavalli, 2006). Roy Batty é quem faz a mediação entre duas consciências, serve como lembrança do que foram os homens no passado, na busca do seu Deus. Assim, Deckard é o sujeito pós-moderno, com identidades que mutam de acordo com o momento. Roy é o sujeito sociológico moderno, com um “eu” definido artificialmente e dotado de razão.

Há um projecto da ciência que importa trazer à luz da temática: o do robô como projecto epistemológico (Elias, 2007). Dick, no seu ensaio intitulado O andróide e o humano, diz: “(…) o que define andróide e humano não é a sua origem, maquínica ou orgânica, mas sim as acções, rígidas ou empáticas, perante os seus semelhantes. Um andróide pode agir humanamente tanto quanto um humano […] pode comportar-se como um andróide” (Dick, 2006: 13-14).  Ora, o que está em causa em Blade Runner é o facto de os replicants serem sempre réplicas que estão tecnologicamente acima dos humanos e que têm como objectivo tornar o mundo num habitat ciborgue. E como Dick sugere em O andróide e o humano, estamos perante um campo do real por via da diluição de fronteiras. Se aquilo que define um andróide e um humano são as suas acções, poderá um andróide ser mais humano do que o próprio humano? Aparentemente, é este dilema ontológico que Blade Runner não resolve, pois para que os replicants possam ser mais humanos do que os próprios humanos falta-lhes tempo de vida, falta-lhes lifespan (Elias, 2007: 232).

Existem no Universo coisas frias e desumanas a que dei o nome de ‘máquinas’. O seu comportamento assusta-me, especialmente se imitam o comportamento humano tão bem que me deixam com a sensação desconfortável de que estas coisas estão a tentar fazer passar-se por seres humanos sem o serem (Dick, 2006: 77).

Rachel’s Song (nunca foi usada no filme; era suposto ser usada nas cenas em que Rachel via crescer as suas dúvidas sobre a identidade; em sua vez foi usado o tema “Memories of Green”)

A CIDADE DAS MÁQUINAS

Em Blade Runner, Los Angeles é uma cidade de máquinas, uma cidade que deixou de possuir instrumentos capazes de funcionar em função do homem. Na cidade do futuro que é Los Angeles em 2019, são as máquinas que substituem os humanos. Na Los Angeles do século XXI, a tecnologia não foi capaz de resolver os problemas do homem. Como poderão réplicas de humanos, feitos à sua imagem, resolverem eles próprios problemas que os seus criadores não foram capazes de resolver? Este paradoxo encerra toda a tecnologia, ou melhor, o seu uso. O que fazemos com ela. Para onde caminhamos, com as máquina do nosso descontentamento? Que máquinas podemos construir para fazer de nós melhores humanos, os replicants, o Nexus-6, ou alguma versão mais evoluída? E se os replicants de Blade Runner têm como missão salvar o mundo, porque vivem apenas 4 anos?

A Los Angeles do filme é no fundo um ‘lugar-máquina’, um território ciborgue simultaneamente real e virtual, orgânico e máquina, sano e esquizóide, uma arena de multiplicidades, de construções de desconstruções (Elias, 2007: 234).

Tornámo-nos mestres e possuidores da Natureza, diz Descartes. O homem constitui-se homem ao dela retirar-se. Em Blade Runner tudo termina em extermínio. Não só a Natureza se vê destruída, mas também o homem se vê destruído por ele próprio, pela técnica que o corrói. A própria técnica se auto-anula: Deckard (uma máquina) ‘mata’ a replicant strip-teaser (outra máquina) (Elias, 2007: 235). Há um carácter predatório incontornável que faz de Blade Runner uma visão transversal da natureza humana verdadeiramente notável. Precisamos de monstros para nos sentirmos mais humanos, diz José Gil (Elias, 2007 : 236).

Blade Runner passa-se num ambiente poluído por um conflito nuclear, um lugar onde a poeira radioactiva é omnipresente. Esta substância destrói a maior parte da vida animal. Muitos humanos morrem ou ficam mentalmente incapacitados. A população restante caminha para a esterilidade. Alguns homens preservam a virilidade e deixam a Terra em direcção a planetas saudáveis. Rick Deckard, o polícia – o blade runner – é um dos infelizes que permanece no inferno poeirento. A sua função é aniquilar os andróides (“andys” no livro) que tentam misturar-se com os seres humanos. Os andróides estão equipados com todas as emoções humanas excepto a empatia. Foram desenhados para funcionarem como armas durante o conflito nuclear, mas viram as suas funções serem reprogramadas para se tornarem os obreiros do programa de colonização. Deckard não deverá deixar que os andróides tentem ocupar o lugar que pertence aos humanos. Deverá aniquilá-los. Ao fazê-lo, estará ele a tornar-se num andróide?

Mas o mais interessante de Blade Runner é o facto de nós, os humanos, representarmos a faceta pós-industrial e niilista da sociedade. Nós somos a solidão, o individualismo que deixa por terra as reivindicações do passado. A luta perdeu o seu carácter militante. São agora os andróides quem representa os valores das luzes, a racionalidade, a luta pelos ideias. Os humanos são as pequenas narrativas, os andróides as grandes. Os andróides simbolizam o romantismo, os humanos a decadência. Uma inversão no caminho de reificação do homem que o torna frio, desolado, descrente, e um paradoxo, pois os andróides são construídos à sua imagem. Esta inversão temporal, que abre uma brecha na linearidade, faz com que pensemos seriamente na direcção que o nosso rumo leva…. e isto nos inícios da década de 80 do século passado era já uma preocupação. O andróide é a única saída para a reconstrução e nós, os Deckards deste mundo, aniquilamos a sua investida. Mas, se tecnologia significa o funesto progresso – a grande premissa de base de Blade Runner -, como podem os andróides, filhos desta, simbolizarem a esperança? É esta inversão de lógicas que faz de Blade Runner um exercício de reflexão insofismável e delicioso. Um conflito narrativo que coloca a resignação em confronto com a luta pela vida. E os sinais dessa resignação são evidentes: o alcoolismo de Deckard, a depressão e solidão de J.F.Sebastian.

Uma das peças mais assustadoras, convincente no que diz respeito à mistura de film noir e de Sci-Fi distópica

O filme tem resistido ao tempo, parecendo hoje beneficiar de um reconhecimento que à época não fora possível, muito devido ao maravilhoso trabalho de Ridley Scott. O seu filme, realizado em plena década de 1980, ainda hoje é actual, comovedor e beneficia de uma autêntica legião de seguidores incondicionais.

Ridley Scott

UMA OBRA DENTRO DE OUTRA OBRA

The music in Blade Runner is so devastatingly beautiful. Yet at the same time it is many other things. Tacky, ominous, haunting, sad. Vangelis did an extraordinary job; his score became a major character (Rutger Hauer cit. por Sammon, 1996: 267)

Cinematograficamente, uma banda sonora original faz parte do processo de pós-produção. Aí, onde se decidem as sequências, onde se decidem os planos, também se decide o score musical. Blade Runner tinha a sua pós-produção agendada para Julho de 1981 e estavam previstas 34 semanas de trabalho. Como refere Sammon, uma das fases mais importantes de um filme:

It’s been said many times that a motion picture is made or broken in the editing room. Blade Runner was no exception (Sammon, 1996: 268)

O argumento de Blade Runner é uma história muito difícil de contar. A complexidade da sua mensagem requer uma banda sonora capaz de transmitir toda a atmosfera psicológica envolvida em cada uma das cenas. Ridley Scott recorreu à ajuda de voice-over para explicar certas cenas, mas mesmo assim foi insuficiente e até criticado. Quem poderia escrever um score à altura de tal responsabilidade?

EVANGELOS O. PAPATHANASSIOU (VANGELIS)

Evangelos O. Papathanassiou

Vangelis estava longe de ser hipótese. Terry Rawlings, responsável pela edição de som de Blade Runner, diz: “I never thought that we were going to use Vangelis to start with” (Sammon, 1996: 272). Muita música tinha sido ouvida, incluindo a de Jerry Goldsmith. Os primeiros contactos com Vangelis foram estabelecidos quando este compunha um score, vencedor de um Óscar, para o filme Chariots of Fire (1981). Quando Vangelis viu um extracto “em cru” de Blade Runner ficou emocionado e aterrorizado. Emocionado pela beleza do filme, aterrorizado pelo facto de o filme prever um futuro assustadoramente plausível, futuro esse que Vangelis acreditava vir a ser possível.

Evangelos O. Papathanassiou (Vangelis) nasceu em 1943, em Volos, na Grécia. Cresceu em Atenas. Autodidacta, incapaz de ler música, compôs a primeira peça para piano aos 4 anos. Em 1968, após a instauração da ditadura militar no seu país, vai para Paris. Aí, é um dos fundadores da banda Aphrodite’s Child. A canção mais popular da banda, Rain and Tears, se for invertida, revela uma feliz coincidência com uma famosa expressão de Roy Batty (personagem de BR): “Tears in Rain”.

A reputação de Vangelis como compositor de música electrónica era grande. Ele era um mestre do sintetizador. Durante os anos de 1970, compôs várias peças para programas de televisão e filmes franceses. Colaborou com Frederic Roussif, compondo a música para Apocalypse Des Animaux Opera Sauvage. Em meados de 1970 vai para Londres, onde constrói um estúdio de 24 pistas, o Nemo Studios. Foi nesse estúdio que Vangelis compôs a Banda Sonora Original de Blade Runner.

Vangelis, rodeado de sintetizadores, no Nemo Studios

A primeira preocupação de Vangelis foi absorver o “sentido” do filme. Posteriormente, conversou com o Ridley Scott para perceber se era capaz de corresponder às suas expectativas. Vangelis ficou imediatamente impressionado com Blade Runner. Estabeleceu-se logo aí um vínculo emocional muito forte. Que tonalidades melhor serviriam o filme?

Vangelis escolheu um registo que pode ser apelidado de “futuristic nostalgia” (Sammon, 1996). Uma vertiginosa mistura de romantismo ousado, nefastos ruídos electrónicos, delicadas matizes celestiais, blues de sarjeta e uma melancolia de cortar a respiração. O score de Vangelis transformou-se num dos mais notáveis e tristes registos para um filme de ficção científica.

Entre 1978 e 1982, Vangelis estava fascinado com instrumentos de percussão. Experimentava misturá-los com sintetizadores para conseguir um efeito acústico-electrónico. Sinos e campainhas estavam por todo o lado. Esses instrumentos de percussão tornaram-se parte integrante da música de Blade Runner.

Vangelis tinha que lidar com um espaço demasiado aberto que Ridley Scott lhe legara. Uma mistura de passado e futuro, um mundo onde o novo e o surpreendente estava de costas voltadas com o que restava, a essência da nostalgia, aquilo que antes era popular na Terra.

UM LONGO PERCURSO

Normalmente, a produção de uma banda sonora de um filme é um processo caro e rápido, envolvendo um grande número de intervenientes. No caso de Blade Runner, é Vangelis quem compõe, arranja, produz e interpreta. Primeiro improvisava a melodia básica de cada faixa, gravava-a em fita magnética, e refinava-a acrescentando outros sons e outras texturas por cima da faixa inicial (imitando o processo de layering que Scott usava com a matéria-prima do footage). A massa musical daí resultante era um produto trabalhado e reformulado, tal como um escultor que esculpe a sua obra. Durante esse processo produzia normalmente só, recebendo visitas pontuais de Ridley Scott ou de Terry Rawlings. Era importante que a sua música fosse aceite como adequada para o filme.

A grande controvérsia em torno da Banda Sonora Original sempre esteve relacionada com o tempo excessivo envolvido na sua criação. Em 1982, os créditos finais de Blade Runner indicavam a edição da BSO na etiqueta Polydor Records. Contudo, a BSO só viu a luz do dia em 1994, 12 anos após a exibição do filme. O que teria provocado este atraso? Estaria Vangelis insatisfeito com algo?

BSO PIRATAS (BOOTLEGS)

Claramente, um período de tempo tão longo entre a exibição do filme e o lançamento para o mercado do disco da Banda Sonora Oficial abriu espaço para uma quantidade de gravações e versões que tentaram ocupar esse espaço em falta. Surgiu, primeiro, uma Banda Sonora sem Vangelis. Um cópia, sem alma, do original. Uma banda sonora “replicante”. Mais tarde, três outras gravações foram lançadas para o mercado, incompletas ou ilegais. Entre 1892 e 1994, várias gravações foram colocadas no mercado.

Finalmente, em 1994, é lançada oficialmente a BSO intitulada Blade Runner: Vangelis (Atlantic/Warner Music UK). O disco continha 12 faixas separadas (algumas com excertos de diálogos do filme), incluindo muitas das músicas mais populares do filmes como Love ThemeTales of the FutureMemoires of GreenBlade Runner End Title. Contudo, muitas outras faltavam. Duas delas de forma compreensível, uma vez que Harps of Ancient Temples fora composta por Gail Laughton e Ogi no Mato é uma música tradicional japonesa.

Blade Runner (OST) 1994 Vangelis

Official Vangelis Score

1. Main Titles (3:42)

2. Blush Response (5:47)

3. Wait For Me (5:27)

4. Rachel’s Song (4:46)

5. Love Theme (4:56)

6. One More Kiss, Dear (3:58)

7. Blade Runner Blues (8:53)

8. Memoires of Green (5:05)

9. Tales of the Future (4:46)

10. Damask Rose (2:32)

11. Blade Runner (End Titles) (4:40)

12. Tears in Rain (3:00)

Onde estava o sinistro riff de duas notas do sintetizador de Vangelis usado para a cena da morte de Tyrell? (uma pista que um bootleg de 1993 intitulou The Prodigial Son Brings Death).

Andrew Hoy explica que não foi devido a nenhum descuido de Vangelis. Como músico, Vangelis sempre se preocupou com a exigência de qualidade dos seus produtos e da satisfação dos seus seguidores. Nesse sentido, ele não incluía todos os temas de Bandas Sonoras Originais nos seus discos. O disco não era uma reprodução fiel da BSO do filme. Não via necessária a inclusão de reprises ou de sons que apenas eram usados para dar mais ênfase a determinada cena. Nos seus discos, Vangelis combinava sempre elementos da BSO com material novo.

Apesar de todos estes episódios e atrasos, apesar de algumas incompatibilidades entre argumento e obra original, entre a visão única e perfeccionista de Vangelis e a impaciência de Ridley Scott, Philip K. Dick é peremptório:

This is not like anything we have ever seen….It isn’t like anything that has ever been done (Philip K. Dick, author of Do Androids Dream Of Electric Sheep, after beeing shown footage of Blade Runner. From “They Did Sight Stimulation on My Brain”, ny Gregg Rickman) (Sammon, 1996)

A PLURALIDADE DAS FORMAS CULTURAIS

Uma obra de arte é produto de uma época, mas também é produto da vivência e experiência dos seus autores. Conhecer as motivações de Philip K. Dick, conhecer a sua história, revela-se imprescindível para reconhecer sinais importantes na sua obra. Entender Blade Runner passa por entrar no universo de Dick, no mundo dos seus origami, na sua visão abalada por episódios da vida pessoal. Contudo, cada obra de arte reflecte muito do mundo em que vive: “(…) é sempre possível sublinhar, referindo-nos a uma sociedade histórica concreta, a prevalência de formas de representação, valores, princípios normativos e modelos de comportamento que apresentam entre si uma relativa coerência” (Crespi, 1997: 28). Talvez por isso, Vangelis viu na visão distópica de Philip K. Dick um “seu mundo”. Muito possivelmente, porque o sistema cultural dominante fez uso das suas regras.  Mas a relação entre as várias obras aqui apresentadas não será, certamente, uma relação linear. Cada uma das partes influenciou a sua sucessora, inspirando-a e provocando estados de alteridade. Cada um dos autores terá sido capaz de acrescentar uma nova interpretação, uma visão renovada, acentuando, mais uma vez, o carácter renovado da criação (aqui encarada, também, enquanto acto de interpretação). Da escrita de Dick ao argumento de Fancher, dos planos de Scott à música de Vangelis, a polissemia da obra de arte revela-se em cada segundo de vídeo, palavra e som.

UMA OBRA CONTEMPORÂNEA

As mudanças concretas no sistema de significados culturais estabelecem-se ao longo dos tempos. São processos lentos, paulatinos, que podem nascer tanto das condições externas como da criatividade da própria cultura (Crespi, 1997). Assim, uma obra de arte é também capaz de transformar a sociedade, de perdurar para além dos tempos, de perturbar e afectar,  de contribuir para uma reflexividade permanente. Neste acto criador, estabeleceram-se as “pontes” necessárias para uma linguagem do seu tempo, uma massa perene do Zeitgeist. Esse é o grande poder da obra de arte. A intertextualidade é disso testemunho.

A arte, como tecnologia da memória, é um poderoso instrumento que legitima o passado vivido. Nela se inscreve um horizonte temporal que é necessário entender, num processo hermenêutico que seja capaz de juntar obra, autor e fruidor. Contudo, na estrutura poética que antecipa a recordação, ocultam-se as dinâmicas sociais produzidas em determinado tempo (Tota, 2000). Assim, a obra fala por si e requer o seu contexto. É nessa perspectiva que Do Androids Dream Of Electric Sheep?, Blade Runner e a Banda Sonora Original de Vangelis devem ser analisadas, para que possamos entender as relações de força nela implicadas. Mas Blade Runner continua actual, pois as preocupações são, na sua essência, as mesmas. Trinta anos não foram suficientes para que, em termos culturais, tenha havido uma grande mudança. Ou será que houve e só muito mais tarde a reconheceremos?

A nova sequela que se anuncia poderá trazer novos dados à discussão sobre que sociedade temos hoje, por comparação com a sociedade que Philip K. Dick usara para condimentar a sua obra.

RIDLEY SCOTT PREPARA UM NOVO BLADE RUNNER

Segundo notícias vindas a público, Ridley Scott prepara um novo Blade Runner. Uma sequela? Um novo filme? Algumas das questões as estas perguntas podem ser esclarecidas nos links que a seguir se disponibilizam:

http://www.publico.pt/Cultura/ridley-scott-prepara-novo-blade-runner_1508655
http://www.guardian.co.uk/film/filmblog/2012/feb/06/ridley-scott-blade-runner-sequel
http://moviesblog.mtv.com/2011/08/19/ridley-scott-blade-runner-harrison-ford/
http://collider.com/ridley-scott-blade-runner-sequel/124714/

ROSA MONTERO – “LÁGRIMAS NA CHUVA”

Inspirada na obra de Philip K. Dick, a escritora espanhola Rosa Montero lançou o seu livro “Lágrimas na Chuva”. Mais um exemplo de intertextualidade, a merecer a nossa atenção futuramente.

O CULTO

Philip K. Dick
BladeZone: The Online Blade Runner Fan Club and Museum
BRMOVIE.com

BIBLIOGRAFIA

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CRESPI, F. (1997). Manual de Sociologia da Cultura. Lisboa: Editorial Estampa.

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Autoria: Paulo Pinto (PG20961)
Mestrado em Comunicação, Arte e Cultura
Universidade do Minho