Archive | Maio 2014

A campanha publicitária do NTT DoCoMo – Touch Wood SH-08C

Daniel Morgado Sampaio (PG25858)

Sociologia e Semiótica da Arte

Intermináveis discussões acerca do que é ou não arte não retiram à música o seu lugar privilegiado neste universo: mesmo havendo outras artes que manipulem tanto o espaço como o tempo, como é o caso da dança, a música possui a particularidade de não precisar de qualquer apoio visual para ser apreciada. Esta propriedade parece ser a mais essencial para determinar a categoria em que se enquadra uma criação artística: chamamos música ao trabalho de Stockhausen ou de John Luther Adams, aceitamos o noise enquanto género musical, e só muito recentemente se disseminou a utilização de expressões como “instalação sonora”. A definição de música, então, talvez esteja menos associada à criação e mais à recepção: música é toda a arte que nos chega através dos ouvidos e que percepcionamos como tal (a subjectividade do que é entendido como “ruído” e a relação entre música e literatura no spoken word seriam debates para outra altura).

Esta categorização releva desde logo o potencial simbiótico da música. Da tragédia grega ao melodrama hollywoodesco, passando pela gesamtkunstwerk wagneriana, a música e as artes visuais andaram de mãos dadas, com elevado grau de sucesso. Não surpreende, então, que a publicidade televisiva se sirva frequentemente desta arte para cativar os espectadores.

No entanto, algo que a indústria musical tem vindo a acelerar é a obsolescência de novos géneros musicais, soando datados e arcaicos no espaço de poucas décadas (ou até mesmo anos). O aperfeiçoamento e o refinamento de géneros antigos é mais difícil de comercializar do que a novidade total. Recorrer a uma balada de soft rock ou a um excerto de dubstep num anúncio televisivo é, então, uma aposta algo arriscada, principalmente quando se quer associar uma marca a uma determinada sonoridade.

A música erudita, contudo, é encarada com alguma reverência e parece estar acima desse tipo de crítica. “As Quatro Estações de Vivaldi” ou a “Carmina Burana” de Orff são duas escolhas recorrentes, de tal modo que soam um pouco cliché, mas continuam a ser relativamente seguras. O mesmo se pode dizer de muita música de piano, de Debussy e Satie até aos compositores modernos influenciados pelo minimalismo. Neste caso, o fundamental não é o instrumento utilizado, mas sim a leveza de uma composição tão sentida quanto melodicamente parcimoniosa. Está aberta a porta para a legitimação de uma liberdade como a de pegar numa peça barroca e tocá-la num instrumento que mal era usado na Europa antes do século XVIII:

Não só Bach é uma escolha interessante para um anúncio, é também um dos mais famosos compositores da História, ultrapassando as fronteiras do mundo ocidental. O Japão é um país tão ocidentalizado que, por vezes, nos podemos esquecer que tem um passado bem distinto dos países europeus, com consequências para a sua cultura. Mesmo que muitos indivíduos não conheçam esta peça, ela não se serve do grande desenvolvimento harmónico que marcou a música europeia dos últimos 300 anos, sendo assim globalmente mais acessível; aqueles que a reconhecerem, por sua vez, podem retirar daí uma maior fruição.

Visto ser uma ode a Jesus, talvez seja sensato excluir desde logo qualquer tentativa de relacionar o texto desta obra musical com o produto anunciado, mas sobram ainda vários pontos passíveis de análise em diferentes áreas. Para começar, temos a manipulação das expectativas ao longo do domínio do tempo: apesar de não ser filmado num único take, como um dos mais emblemáticos anúncios de automóveis, cativa também o espectador e, ao contrário do anúncio da Honda, nada aqui indica o tipo de produto publicitado – somos forçados a ver até ao fim para satisfazer a nossa curiosidade e saber que se trata de um anúncio a um telemóvel. Um ponto em comum entre ambos os anúncios, porém, é o facto de não ser feita qualquer referência às propriedades do produto. São anúncios assertivos: em vez de fornecerem uma lista de razões para adquirirmos um produto, dizem meramente “vendemos isto; comprem-no”. Há uma única dica auditiva: o xilofone, instrumento de madeira, é feito do mesmo material que é usado no telemóvel, material esse pouco ortodoxo e, portanto, mais memorável.

Apesar de não ser essa a origem da expressão, a “música clássica” é frequentemente associada às classes mais altas. Este telemóvel foi limitado a 15 mil unidades que rapidamente esgotaram, tornando-se assim algo de único, exclusivo e, daqui a uns anos, um item de coleccionador tão valioso quanto um vinil do Cravo Bem-Temperado. O contraponto de Bach é um dos pináculos da música clássica, um balanço insuperável entre a emoção e a perfeição matemática. A peça escolhida, ao ser facilmente identificada como composta por Bach, recorda-nos isso, mas possui também uma simplicidade relaxante. E o consumidor, ao escolher um smartphone, procura as mesmas características: agradável de usar, com software bem programado, estável, simples e intuitivo.

Marginália Imagética do Silêncio

Fernando Miguel Alves Mendes (PG24780)

Mestrado em Comunicação, Arte e Cultura – 2013/2015

Sociologia e Semiótica da Arte

Docente: Professor Doutor Albertino Gonçalves

Universidade do Minho – Instituto de Ciências Sociais

 

“ELOGIO DO SILÊNCIO”

 Ousei

Interromper um sábio

 Que se ocupava

 Do seu trabalho: Olhar

 Silenciosamente

 O mar entre as árvores.

 Ousei

 Interrompê-lo

 Em seu ofício: Olhei-o

 Silenciosamente

 Como se ele não estivesse

A fazer nada”

António Ramos Rosa / Casimiro de Brito,

Duas Águas, Um Rio, Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2002.

 

 O que é um som? Esta interrogativa criou algum som, se foi lida sem sonância verbal audível? O que é necessário para criar um som que aceitemos como tal? Partimos do facto que um ruído é avaliado segundo a sua intensidade, a sua altura e o seu timbre (Dolto, 1977: 51). Cremos que nada que exista no mundo esteja isento ou excluído de som: uma folha ao vento; uma pedra que resvala; um afago epidérmico; o gotejar de uma torneira danificada; a explosão nuclear em Hiroxima; um peixe minúsculo nas profundezas do mar; um gato espreguiçando-se; um pardal largando um ramo; uma rã saltando para o charco, um radiodespertador abalroando terrivelmente cedo ou até… a respiração.

Num primeiro enquadramento, é necessário saber que as características físicas do som são: o ciclo (alternância entre compressão e descompressão), a frequência (números de ciclos na unidade de tempo) medida em Hertz (ciclos por segundo), a intensidade ou amplitude (amplitude do ciclo) medida em decibel (dB), o timbre (característica dependente da fonte sonora) e a velocidade (dependente do meio) (Paço, 2010: 9). Mas existirá o som se não existir quem o ouça?

Necessariamente, temos de diferenciar o som de silêncio, para entender ambos. Designa-se de tom puro qualquer som com uma frequência específica. O som complexo, como o da palavra falada, é formado por tons de várias frequências e intensidades. O campo auditivo humano abrange uma gama de frequências de 20 a 20 000 Hz e intensidades até 140 Db (ibidem: 9). Mas, primeiramente, há que distinguir silêncio de mutismo. Se o silêncio incita a revelação, o mutismo contraria-a. Neste sentido, o silêncio é como uma zona de serventia. Por outro lado, o mutismo é a obstrução da passagem. “[…] segundo a tradição bíblica, antes da criação havia o silêncio; e haverá de novo silêncio no fim dos tempos. O silêncio envolve os grandes acontecimentos, o mutismo oculta-os; um dá às coisas grandeza e majestade; o outro despreza-as e degrada-as. Um marca o progresso; o outro, uma regressão. O silêncio, dizem as regras monósticas, é uma grande cerimónia. Deus chega à alma que faz reinar em si o silêncio, mas torna mudo aquela que se dissipa em tagarelice e não penetra naquele que se encerra e se bloqueia no mutismo” (Chevalier, 2010: 609).

Uma das primeiras manifestações que um ser humano produz quando nasce é um som, mesmo antes de abrir os olhos, de tocar, cheirar ou provar, até escutar algo, sabendo que o faz. O ser humano produz primeiro o som antes de o escutar. Da mesma forma, os que são produzidos pela natureza são sons complexos, isto é, variam em função do tempo, frequência e amplitude, e são emitidos com um determinado volume ou pressão sonora (Paço, 2010: 24). O som preexiste na capacidade humana de o ouvir, sabendo que o ouve. Assim permanecerá para sempre. Tudo o que disser, murmurar ou gritar, será o prenúncio de algo que julga saber e que permanece na sua memória como sendo. Admite-se, assim, que na medida em que o acesso ao conhecimento do som está vedado, a consciencialização da correspondência letra/som está comprometida (Sim-Sim, 2005: 34). Com o tempo apreenderá a associar, a tudo o que existe, o som que ouviu brotar disso, tal como aprenderá que tudo isso tem um nome, uma palavra que se incorporará como representação simbólica, como cada minuto que passa se incorpora no minuto que passou, ficando assim preso para sempre, sem hipótese de resgate. No processo de memorização está envolvida a aquisição, armazenamento e recuperação da informação (Reis, 2000: 25). Ainda mais, com o tempo, conseguirá o ser humano imaginar como soa o fruto que tomba da árvore exótica na ilha tropical onde nunca esteve. Não o fruto dessa árvore, que poderá nunca ter existido, mas daquele que existe para ele e que, assim, nada nem ninguém poderá provar o contrário, nem a própria árvore caso fosse encontrada – como se alguém soubesse o que procurar, como se a própria pessoa a reconhecesse se a visse.

Podemos, sem grande risco de erro, afirmar que ouvimos um som com mais do que um sentido. Entende-se esta afirmação se tivermos em conta que os sons são detetados através de vibrações geradas por um processo fisiologicamente ativo, deslocando-se desde o seu ponto de origem no órgão de Corti em direção à base da cóclea, através da janela oval. Estas vibrações vão provocar a mobilidade da cadeia ossicular, acabando por determinar a movimentação da membrana timpânica e produzir sons, de forma sobreponível, mas em sentido inverso ao da estimulação auditiva induzida pela onda sonora (Paço, 2010: 35-36). Com esta descrição e, sabendo que a absorção do mundo se efetua de forma sensorialmente intricada e comprometida, é-nos imediato perceber que o ser humano possui vários módulos percetivos para os cheiros, os sons, as imagens, que imagino ligados cada um ao seu tipo de memória. No entanto, o indivíduo só valoriza um odor se estiver ligado a outras perceções (Ninio, 1994: 188). Podemos, arriscando um pouco, dizer que um som começa muito antes de começar e termina muito após ter terminado – como nos diz o ator e cineasta russo Sacha Guitry (1885-1957), “quando se acaba de ouvir um trecho de Mozart, o silêncio que se lhe segue ainda é dele”. Esses opostos, amplos e semelhantemente diferentes, são o cerne que nos interessa aqui refletir, mais do que aquilo que os medeia e os distingue, unindo-os. São, esses opostos, simultaneamente, a marginália imagética do silêncio.

Nada intriga e magnetiza mais o indivíduo do que a sua experiência sensitiva. Nada atrai mais o indivíduo do que aquilo que subitamente rompe à sua frente e o absorve didaticamente com suas ondas enigmáticas de estranheza e desconhecimento. Pois, como nos afirmou Emmanuel Kant (1724-1804), “nas trevas, a imaginação trabalha mais ativamente do que em plena luz”. Nada, como o som, como exemplo máximo, deixa o indivíduo perplexo e atónito do que ouvir o que nunca ouviu. Observemos que o ouvido é exercitado por uma incitação a observar e a ouvir todos os ruídos que se produzem no momento presente (Dolto, 1977: 51).

Vejamos a seguinte reação da criança.

Chegados ao momento em que, depois de uma miríade de experiências sensoriais adquiridas, cada mínimo som faz parte daquilo que nos é externamente interno, coloca-se a seguinte certeza: dois indivíduos distintos saberão reconhecer, por exemplo, o som de um prego a ser pregado. Conseguirão imaginar o som de um prego a ser pregado, também. Mesmo que um indivíduo seja ateu e o outro profundamente cristão. Contudo, essa capacidade de ouvir ou fabricar mentalmente esse som está de alguma forma relacionada com as suas (des) crenças religiosas? Estará impedido o ateu de cogitar mentalmente o som de um prego a aferrolhar a mão de Cristo na cruz? Obviamente que não impede, mas dota-o de uma imagética diferente. Isto porque qualquer som, real ou imaginado, tem a sua origem num momento muito anterior ao do seu despoletar sonoro. Da mesma forma que todas as experiências que tivemos com a água determinará o espanto com que olhemos o mar pela primeira vez, tudo o que ocorre sensorialmente, pela primeira ou milésima vez, já houvera começado, sem darmos conta. Neste cenário, a memória é ação, a recordação é reconstruida (Wieviorka, 2002: 204). Assim, para o ateu, imaginar sonoramente Cristo a ser pregado na cruz pressupõe que todos os sons relacionados com a sua descrença sejam imbuídos nesse exercício, separando a emoção da razão, tornando-as marginais. Essa marginalidade oferece ao indivíduo a capacidade de possuir para si a originalidade de qualquer som, por mais semelhante que seja para diferentes sujeitos.

É, na verdade, verossímil dizer-se que repousar num estereótipo é económico, enquanto tomar em conta informações individualizadas exige recursos, tanto para afastar o estereótipo como para o conservar (Leyens e Yzerbyt, 1999: 58). Em suma, ninguém comporia a mesma canção, por mais semelhante que fosse o tema. Da mesma forma, duas pessoas não ouvem a mesma canção, duas pessoas não vêm o mesmo quadro. E, no entanto, duas pessoas não saberiam dizer qual delas tem razão, sabendo apenas que ambas se emocionaram.

Porque nada existe no mundo que não tenha som, nada existe mais íntimo para um ser humano do que o silêncio. De tudo o que existe no mundo é, para o homem, o silêncio o que tem de mais seu. Por essa razão, é mais fácil para a sociedade fazer com que uma criança consiga, um dia mais tarde, ouvir uma flor a relinchar – se assim lhe for direcionado todo um processo cognitivo –, do que fazer com que um idoso consiga ver um cavalo como se fosse mais uma orquídea num jardim – se, após uma vida, lhe impusessem essa nova conexão. Porque a criança vai a tempo de ser idosa, sem saber o que sentirá, e o idoso já não tem o tempo de ser criança, mudando o que sentiu.

O que não sabemos que existe tem o som de quê? Um bater de asas de um copo de cristal, um crepitar de fogo nas rugas de um transeunte, um ranger de portas entre sílabas de palavras, passos na neve de um dedo que conta as estrelas de um céu noturno? A partir de um dado momento é, para o indivíduo que viveu e que vive em sociedade, esperável ouvir determinado som de determinado cenário, complexo ou simples. No entanto, segundo Stendhal (1783-1842), “nada paralisa mais a imaginação que o apelo à memória”.

Vejamos, no seguinte vídeo, qual o som que esperamos ouvir.

Conseguimos, com isto, entender que o silêncio tem a forma do tempo e o tempo tem o espaço do silêncio. Ou seja, para se conseguir obter numa tela uma figura só podemos fazer de duas maneiras: ou preenchemos com cor o seu conteúdo ou pintamos tudo à sua volta deixando-a por preencher. Em ambas as maneiras, conseguimos obter as linhas fronteiriças dessa figura. Contudo, pela primeira maneira, conhecemos o seu património interno; pela segunda, apenas conhecemos tudo o que lhe é exterior. Com o som, muito de semelhante ocorre. Se o ouvirmos, pela maneira como pintamos internamente a figura, sabemos a que corresponde visualmente; pela maneira como pintamos externamente a figura, sabemos apenas aquilo que conseguirmos imaginar como seria essa desabitação. Assumimos daqui, portanto, uma certa definição de arte, sabendo que a experiência artística tem lugar no teatro da imaginação (Dutton, 2010: 102). Arte pode ser dentro de duas situações possíveis: mudar uma coisa para um sítio onde ela nunca esteve ou mostrar o sítio onde ela sempre figurou, mas onde nunca foi vista parcial ou totalmente. Porém, à exceção do fenómeno artístico, tudo intima estar dentro ou perto de algo que a realidade física e tangível apresente. Conclui-se daqui que as obras de arte tornam-se aparições no sentido mais rico do termo, aparições de um outro, quando o acento incide sobre o carácter irreal da sua realidade (Adorno, 1993: 97). Daí que a imagem prescreva o seu som genuíno, e vice-versa, e soe a falso ou cacofónico o todo que resulte, por mais verdadeiras que sejam as partes que o compõem. Assim, para atravessar os caos, precisa de estar em sintonia, precisa de se adaptar aos movimentos do caos, precisa de aprender não apenas a acompanhá-lo, mas a estar sempre um passo adiante (Berman, 1989: 174-175).

No entanto, quando um indivíduo ouve determinado som, esse som existirá dualmente para ele, ou seja, “quando o objeto principal na minha consciência é uma composição musical verdadeira, passo a ter duas faixas musicais a tocar na minha mente, uma com a peça de Bach que está neste momento a ser reproduzida, e outra com a faixa semelhante a música com que reajo à música real, com a linguagem da emoção e do sentimento […] – chamemos-lhe música sobre música.” (Damásio, 2010: 315). Outra coisa é quando dois sentidos absorvem duas experiências sensitivas que não se coadunam. Neste caso, a perceção fica comprometida pela insolvência da compreensão, posto que um sentido não suprime o que um outro apreende.

A linguagem humana, nas suas mais variadas formas, é simultaneamente a ponte e a travessia para chegarmos ao outro, bem como a nós próprios. Possui e permite uma dimensão ontológica. Mas, pelo que nos diz Friedrich  Nietzsche (1844-1900), “nunca se ouvem senão as perguntas para as quais se é capaz de encontrar uma resposta”, ou, como nos diz Francastel: só vemos aquilo que conhecemos ou, pelo menos, aquilo que podemos integrar num sistema coerente e, por conseguinte, enquadrado no tempo das representações significativas (1998: 99). Aqui reside também a importância do silêncio. O silêncio é o imenso vácuo que medeia os lados que essa ponte une. Sem esse silêncio, esse vácuo, a ponte é uma insignificância ou, melhor (não) dizendo:               . Do mesmo ponto de vista, podemos afirmar que, sem essa ponte ou os lados que esta une, o silêncio não existe. Compreende-se, nesta lógica, aquilo que a Escola de Palo Alto estabelece: é impossível não comunicar.

É, assim, o silêncio, uma inevitável pertença de todo o Ser, dado que tudo emerge do silêncio e sem este nada pode imergir. O exemplo mais imediato para se compreender esta relação é a música. Qualquer som produzido por um instrumento ou voz humana não apaga o silêncio primevo, antes o complementa sonoramente e por si é complementado, revestindo-o de fronteiras simbólicas, ora frágeis ora fortificadas, das quais a linguagem se constrói. Linguagens icónicas como a pintura, a fotografia ou a escultura (para Platão, uma arte que opera através do silêncio) detentoras de uma natureza mais silenciosamente profusa do que outras artes, como a música ou a dança, servem-se do silêncio de forma mais completa e óbvia, mantendo com ele uma intimidade propícia ao vislumbre e fruição criativos do observador. Muito embora, nos dias de hoje, mais precisamente na era da reprodutividade técnica, que nos falou Walter Benjamin, a imagem, agora disponível no reino digital, veja-se acompanhada pelo som, quanto mais não seja pelo ruído intrínseco da máquina. Todavia, esta nova era abriu uma miríade de potencialidades que pode, em muitos casos, dotar a imagem de novos poderes emotivos pela sua mediação e interação multimédias.

Se o silêncio aproxima o homem do divino – vejamos a prática religiosa da meditação – este é muito mais do que uma comunicação não-verbal, visto que o silêncio também, por si só, produz significações (vejamos os filmes mudos de Charlie Chaplin, a arte do mimo, a linguagem gestual para surdos, como exemplos). Se retiramos o silêncio do meio de dois sons estamos a criar um mero ruído cacofónico, muito semelhante a retiramos o copo entre a água que este contém e a mesa onde este se encontra. É assim, o silêncio, o fluxo e a vasilha que fecunda tudo o que existe no mundo e o liberta da sua inimaginabilidade, sem que perca, todavia, esta condição. Falarmos de silêncio é, assim, falarmos de tempo e espaço.

Na perspetiva totalitarista de Hegel (1970-1831), a conceção do silêncio é completamente secundarizada pela importância do saber, da linguagem, enquanto absoluto, ou seja, o real é praticamente indissociável da verdade e do logos discursivo. Com Max Picard (1888-1965), a problemática do silêncio abarca toda uma preocupação filosófica, não descurando, muito embora, a dimensão religiosa. No entanto, podemos apontar Martin Heidegger (1889-1976) e Ludwig Wittgenstein (1889-1951) como exemplos de teóricos que com mais acuidade trataram do tema do silêncio. Porém, no âmbito da psicanálise, especialmente nos trabalhos realizados por Sigmund Freud (1856-1939), esta questão do silêncio releva-se para um patamar de grande importância, significado e significação: o silêncio é o fenómeno que descobre ou desvenda o que está oclusivo e recalcado.

Embora não possamos definir ou conhecer o silêncio, materialmente ou imaterialmente, é possível percorrer e compreender analiticamente os seus efeitos. Se, como nos diz Wittgenstein “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”, o silêncio torna essa linguagem possível, dado que por si e em si é configurado. Assim, para o inconsciente, a linguagem apresenta-se com maior aceção imediata se figurada cognitivamente sem a sua oralidade sonora. A prova disso é que a intuição, a inspiração, a improvisação não trazem à luz senão experiências esquecidas e conhecimentos ocultos (Hauser, 1988: 86). Temos, em jeito conclusivo, de distinguir três distintas interpretações do silêncio: aquele que deriva do verbo latino scilere; de um outro verbo latino tacere; e do termo, também latino, tacitus. No primeiro caso, significa ser ou estar silencioso; no segundo caso, significa emudecer, suprimir a fala inconscientemente; no terceiro caso, significa uma certa obrigação de se manter calado, na perspetiva de um recalcamento. Esta última situação é melhor compreendida à luz da fábula “O Príncipe das Orelhas de Burro”, de José Régio (1901-1969). Naturalmente que, na lógica freudiana, o silêncio apresenta-se configurado pela intemporalidade do estado do inconsciente, significando também que a relação expressividade-silêncio é um binómio de conflitualidade interna, de fonte de prazer e dor, podendo haver nesta dialética uma alternância de papéis. O silêncio pode, ainda, resultar de uma privação mais ou menos radical: o esquecimento ou a morte. Nesta perda, o indivíduo regressa ao estado primitivo em que a oralidade de um dado conhecimento já não (lhe) transporta a simbologia ou significação mais fecundas. A experiência de viver é, também, uma gradual acumulação de sons; uma (des) sincronização orquestral da qual somos um maestro sentado na plateia dos esqueletos, que um dia o serão.

Nos dias de hoje, podemos afirmar que assistimos a um novo laconismo espartano, se considerarmos que a era da tecnologia tenta suprimir o silêncio, se não pela verbosidade purista do discurso linguístico, pela excessiva massificação do ruído. Não sendo possível o silêncio sem ruído, fica comprometida toda uma relação mística com o desconhecido, tornando-o uma mera dissolução da verdade empírica, um pulsar nérveo de incomunicabilidade. O silêncio não é assim o inefável; o silêncio é o que dota algo de dizível, de sonoramente sensível. Possui, assim, um aspeto quase maternal, umbilical. Neste cenário criacionista, compreende-se a narrativa bíblica “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João 1:1-4). No princípio era o verbo, mas antes o que havia? A ausência da palavra, da expressividade sonora, suscita, antes do mais uma reflexão: o que precede e o que sucede depois dessa manifestação? Naturalmente que o silêncio após a som não é o mesmo que o antecedeu. Significa, portanto, que o silêncio pode também ser uma extensão do percetível ou do imaginável. E como silêncio também se revela significação, visto que significar é retalhar o sentido, reedificá-lo, moldá-lo (Carmelo, 2003: 69). O silêncio é a aproximação à verdade, o instante em que o divino nos larga para o centro da terra, o momento em que o demoníaco nos faz emergir em direção aos céus.

Antropologicamente, o silêncio não tem o mesmo significado nas diferentes culturas. Por isso, é necessário pensar o silêncio abarcando a sua diferenciação entre os diferentes povos. Pode-se, atualmente, pensar no silêncio dentro da “era da sua reprodutibilidade técnica”. A publicidade, no seu exercício mediático, surge aqui como exemplo fulcral da utilização, voluntária ou não, do silêncio. Este, em muitos casos, apela ao desejo íntimo de uma realidade suscitada, simbolicamente incitada, exoticamente provocada. Visto que a comunicação não aparta o silêncio, este surge como fenómeno modelador e modulador da linguagem. A comunicação é um universo multidimensional (Gomes, 1999: 160). A arte da retórica é um bom exemplo da gestão do silêncio. Dir-se-á mais, a criação de uma ideologia serve-se, em alguns casos, da obliteração do silêncio ou do silenciamento do existente, dotando alguns factos de negativismo e outros de um carácter positivo. Os discursos políticos estão repletos destes cometimentos. Vejamos, por outro lado, no tempo e nas culturas em que a visão feminina não tinha tanto valor ou preponderância face à visão masculina do mundo. Ao ignorar algo está-se a obliterar essa realidade forçando o seu desaparecimento. Contudo, o ato de excluir algo pode dotar essa mesma coisa (som ou imagem) de um novo poder e uma nova evidência: vejamos o caso da obra musical 4’33’’ de John Cage ou da obra cinematográfica “Branca de Neve” (2000), de João César Monteiro. Aqui, o silêncio apela pela ausência assinalada à evidência transmutada.

Desde a sua compreensão antropológica ao seu entendimento psicanalítico, a experiência do silêncio é, em suma, um processo fenomenológico de linguagem, nem sempre totalmente interpretável, mas quase sempre comunicativo. Curiosamente, a descoberta da linguagem coincide, então, com a descoberta da significação, e isto explica por que razão, na verdade, a invenção da linguagem e o nascimento das ideias, a primeira libertação do poder do intelecto, provavelmente aconteceram ao mesmo tempo (Deely, 1995: 140). Variando a sua dosagem, o silêncio é um fluxo irregular que resgata o real da própria realidade. Mais do que a tela branca que suporta a pintura, o silêncio é a existência paralinguística de toda a expressividade; o alfa e o ómega do cognoscível numa demanda de revelação axiológica do mundo.

Assim, ouvimos o silêncio como se apenas o conseguíssemos saber olhando-o por um buraco de uma parede ou porta imaginária.

 

Bibliografia

ADORNO, Theodor W., Teoria Estética, Lisboa, Edições 70, 1993.

BARBALET, J. M., Emoção, Teoria social e estrutura social: uma abordagem macrossocial, Lisboa, Instituto Piaget, 2001.

BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido se dissolve no ar, Lisboa, Edições 70, 1989.

CALABRESE, Omar, Como se lê uma obra de arte, Lisboa, Edições 70, 1997.

CALABRESE, Omar, A idade Neobarroca, Lisboa, Edições 70, 1999.

CALABRESE, Omar, A linguagem da arte, coleção Dimensões, n.º19, Lisboa, Editorial Presença, 1986.

CARMELO, Luís, Semiótica: uma introdução, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2003.

CHEVALIER, Jean, Dicionário dos símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números, 2ª. Ed., Lisboa, Editorial Teorema, 2010.

CUNHA, Tito Cardoso e, Silêncio e comunicação: ensaio sobre uma retórica do não-dito, Lisboa, Livros Horizonte, 2005.

DAMÁSIO, António, O livro da consciência: a construção do cérebro consciente, Lisboa, Círculo de Leitores, 2010.

DEELY, John, Introdução à semiótica: história e doutrina, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

DOLTO, Françoise; MUEL, Antoinette, O despertar do espírito, Lisboa, Edições 70, 1977.

DORFLES, Gillo, A moda da moda, Lisboa, Edições 70, 1995.

DUTTON, Denis, Arte e instinto, Lisboa, Circulo de Leitores, 2010.

FOCILLON, Henri, A vida das formas: seguido de elogio da mão, Lisboa, Edições 70, 2001.

FRANCASTEL, Pierre, A imagem, a visão e a imaginação, Lisboa, Edições 70, 1998.

GOMES, António Silva (org.), Publicidade e comunicação, 3ª. Ed. Lisboa, Texto Editora, 1999.

HAUSER, Arnold, Teorias da arte,2ª ed., Lisboa, Editorial Presença, 1988.

HUYGHE, René, O poder da imagem, Lisboa, Edições 70, 1998.

LEYENS, Jacques-Philippe; YZERBYT, Vincent, Psicologia social, Lisboa, Edições 70, 1999.

NINIO, Jacques, A impregnação dos sentidos, col. Epigênese e Desenvolvimento, nº. 4, Lisboa, Instituto Piaget, 1994.

PAÇO, João [et al.], Introdução à surdez, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2010.

REIS, José Luís, O marketing personalizado e as tecnologias de informação, Lisboa, Edições Centro Atlântico, 2000.

SIM-SIM, Inês (org.), A criança surda: contributos para a sua educação, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.

WIEVIORKA, Michel, A diferença, Lisboa, Fenda, 2002.

Vídeos

Vídeo 1: Fernando Moreira (2011), Reação de bebê à mãe assoando o nariz vira hit na web, <http://www.youtube.com/watch?v=4fa-_IeOMa0> [página disponível em 05/04/2014]

Vídeo 2: Nina Rosa Duarte (2011), Cidade de Goiás: badalar do sino da Igreja de São Fco. de Paula, <http://www.youtube.com/watch?v=_ZWucEKWZcM> [página disponível em 05/04/2014]

Vídeo 3: John Gallagher (2013), The Stranglers : ‘WaltzinBlack’, do album “The Gospel According to the Meninblack”, de 1981, <http://www.youtube.com/watch?v=9ynd2A91cXA> [página disponível em 05/04/2014]

 Vídeo 4: Excerto do filme “Immortal Beloved”, de 1994, dirigido por Bernard Rose, <http://www.youtube.com/watch?v=524VlYD0PVw> [página disponível em 05/04/2014]