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A experiência do Historium na construção de narrativas ficcionais por processos artísticos reveladores da Identidade

«(…) os objetos de arte fornecem, essencialmente uma experiência imaginativa tanto para os produtores, como para o seu público. (…) O mesmo pode ser dito de qualquer história bem contada, quer esta seja mitológica ou uma história pessoal. (…) Daí que a experiência artística tem lugar no teatro da imaginação.»

(DUTTON: 102)

«Uma experiência mágica na Idade Média», assim se dá o mote para o projecto Historium. A proposta para uma VIAGEM NO TEMPO, até à época de ouro da Idade Média, tem tanto de real como de ficção, conjugando ambas numa experiência que estimula os 5 sentidos e apela a toda uma panóplia de aspectos artísticos, digitais e tecnológicos para a sua concretização.

Tomando por base um quadro do pintor Jan van Eyck, o recém-inaugurado Historium, em Bruges, na Bélgica funciona como um ‘museu’ nascido para contar uma ficção, enquadrando o contexto temporal da pintura, na cidade e sociedade de então (século XV), retratando a cidade no contexto da vivência urbana, caracterizando-a na Arquitetura, habitantes e seus modos de vida. Recorre, para isso, a uma ORIGINAL FORMA EXPOSITIVA, em que a comunicação assenta na criatividade da utilização de tecnologias cinematográficas de ponta e outras sensoriais para recriar ambientes.

A Virgem com o Cónego van der PaeleA partir de uma obra de arte de Jan van Eyck – “A Virgem com o Cónego van der Paele” (1434-1436) que pode ser vista ao vivo no Groeningemuseum – as figuras retratadas ‘ganham vida’ para encarnar nas personagens da ficção do Historium. O próprio mestre Jan van Eyck, abre (literalmente) as portas do seu atelier, partilhando as suas práticas artísticas com o público, surgindo nesta ficção com o exótico turbante com que se auto-retratou outrora.

Jan van Eyck no HistoriumO ELENCO do Historium tem como figura central a personagem de Anna, a modelo alegadamente contratada para a alusão à pintura original da Madona com o menino, a musa que inspiraria o pintor para a realização desta encomenda de van der Paele. A beleza de Anna claramente impressiona Jacob, o jovem aprendiz e ajudante de van Eyck, cujos honestos intentos profissionais ficariam suspensos a partir do momento em que se cruza com Anna. Tudo o que passava por uma simples missão – receber Anna no porto de desembarque, levando-a até ao atelier do mestre pintor, juntamente com o papagaio verde para a ‘montagem’ do quadro – se tornam num desafio complexo para Jacob. Frederico, o papagaio verde, porém, parece encontrar também ele o seu par, um papagaio vermelho fêmea, cuja presença sobrevoa esta ficção em várias fases deste(s) ROMANCE(S).

Folheto HistoriumRomance este, que é adensado pelo MISTÉRIO com que vão sendo reveladas estas personagens, numa mistura de ‘ingredientes’ cuja universalidade contribui, claramente, para a CREDIBILIZAÇÃO desta PRODUÇÃO MEDIÁTICA, aumentando a aura mística do legado patrimonial e sociológico que tão bem caracteriza Bruges

«(…) a maneira simbolista põe em relação heterogéneos e constrói pequenas máquinas por via da montagem de elementos sem nexo entre si. (…) a maneira dialética visa, com o choque dos diferentes, o segredo de uma ordem heterogénea, a maneira simbolista junta os elementos na forma do mistério. Mistério não quer dizer enigma ou misticismo. Mistério é uma categoria estética (…) uma pequena máquina de teatro que fabrica analogia (…)».

(RANCIÈRE: 79)

Nesta experiência contemporânea, permite-se um embarque profundamente atual nesta viagem, quase como se uma espera do metro se tratasse, em que a cada 5 minutos a porta se abre, correndo para cima e libertando fumo para o exterior, com a espectacularidade de um mistério encenado, como que um convite à emersão na própria história. As escadas de acesso ao primeiro piso introduzem já elementos da época, como são as malas, com o simbolismo próprio de uma VIAGEM NO TEMPO, deste “rendez-vous” com a história, conforme é promovido.

«A narração de histórias é um espelho da experiência social quotidiana e diária: de todas as artes, é a mais adequada para retratar as mundanas estruturas imaginativas da memória, perceção imediata, planeamento, cálculo e tomada de decisões, tanto experienciando-as por nós próprios como pela nossa compreensão da experiência dos outros. Mas a narração de histórias também é capaz de nos levar para além do comum e é neste aspeto que reside a sua capacidade de ampliação mental.».

(DUTTON: 201)

Esta forma de “teatralizar” a ficção, é transposta para o espaço do edifício através da sequência de cenas em que é trabalhada a ação, com uma duração aproximada de 35 minutos, numa sequência guiada áudio multilingue distribuído aos visitantes, amplificando os efeitos sonoros.Sequência da exposição do HistoriumAo longo de 7 salas temáticas, os visitantes usufruem da perspectiva voyearista das várias cenas da ação, presenciando cenários diversos como o do porto (onde Jacob espera Anna), o atelier do artista (onde Jan van Eyck aguarda impacientemente os modelos Anna e Frederico, sob a espera de van Pear que repousa num cadeirão até à sua entrada em cena), o edifício alfandegário (onde Jacob desespera pela resolução dos seus problemas), a sala de refeições, a sala de banho (onde Jacob revê ou imagina rever Anna), o passeio de Anna e Jacob pelas ruas de Bruges, enquanto os papagaios celebram o reencontro num namoro à bolina dos ventos…

Cada uma das salas é trabalhada para estimular os sentidos de uma forma particular – e quando não são realmente experienciados os sentidos, são, pelo menos, evocados. Assim, a abertura do atelier de Jan van Eyck ao público do Historium permite perspetivar os modos de trabalho do artista daquele tempo, com toda a logística que caracterizava o espaço. O Cónego van der Paele, num molde robotizado com aspeto de cera, repousa com a serenidade de uma respiração simulada. As salas possuem um ou vários ecrãs, alternado visualizações individualizadas ou com a dimensão de sala de cinema (VISÃO). Todos os cenários são plenos de peças passíveis de serem tocadas que extravasam as 2 dimensões do projectado, tornando palco da ação o espaço onde se movimentam os visitantes (TACTO). Esta dimensão é, logo após aos efeitos visuais e sonoros a mais complexificada, na medida em que atua pela artificialidade própria da simulação de efeitos como o do vento, por exemplo, para ilustrar o voo dos papagaios sobre a cidade de Bruges de 1435. Na última parte desta viagem reveladora da IDENTIDADE deste museu da cidade, cuja visita é revelada do interior para o exterior, não é deixado de fora o sentido do OLFACTO e do PALADAR, permitindo usufruir dos sabores típicos das comidas e bebidas belgas, no bar e loja gourmet de passagem obrigatória. Haverá melhor maneira de terminar esta viagem, senão apelando às vontades mais intrínsecas e viscerais do ser humano?

Bar HistoriumBar exterior do Historium(fotografias: autora)

O cenário retratado na película é, no final, passado para a dimensão real, com usufruto dos espaços do edifício original, incluindo balcões de vista privilegiada para a praça do comércio – Grote Markt – onde se localiza o Waterhalle – edifício que aloja o Historium. Integrado na praça original e cujas marcas do passado é possível sentir, a Arquitetura do edifício consegue, mais uma vez captar os sentidos, embrenhando-nos algures entre passado e presente, fazendo-nos sentir parte da história.

Vista desde o Historium sobre a praça Grote Markt(fotografias: autora)
HISTORIUM_visit_bruges.be(Watterhalle, Grote Markt, Brugge)
Grote Markt (1435)(Watterhalle, Grote Markt, Brugge – Séc. XV)

Não parece ser coincidência a localização do museu neste centro urbano COMERCIAL, que já o era no século XV. Na verdade, há todo um sentido promocional deste projecto, entendido quase ao jeito de MERCADORIA, ao ser publicitado como “atração”, promovido à boa maneira de um filme de sucesso, mas prometendo um espectáculo multisensorial muito mais completo! Primeiro com o teaser, depois com o trailer, a ficção do Historium consta já da base de dados IMDB. O site e o folheto apresentam-se como extensões promocionais desta proposta, sendo que em todos os sites da cidade o Historium se revela atractivo pela multiplicidade de experiências que promete. Talvez porque,

«A cultura integralmente convertida em mercadoria deve tornar-se também a mercadoria-vedeta da sociedade espectacular

(DEBORD: 123)

Daí que, consoante o agente de intervenção no processo criativo do Historium, o enfoque seja distinto. Em STORIFY, Kene Illegems (Art Director/Director), reforça o lado do romance histórico; «We are creating a magical experience that will excite all of your senses» é como Matthias Closterman (Design & Production Manager), faz apologia da multisensoralidade; «Film, scenery, music and special effects all work together to create a fusion of history and romance» com que Chris Mascarello (Computer Graphics Supervisor) resume a conjugação das artes e que fazem deste lugar um verdadeiro centro de cultura “vivo” – tal como o é, em escala superior, a própria cidade de Bruges. Qualquer uma destas perspectivas acrescenta ao Historium aspectos distintos, mas simultaneamente compatíveis e legítimas, que amplificam a esfera da experiência em si: «Experience a touching love story that brings you back to the Middle Ages. Based on historical facts and research».

Em todo o caso, e inegável o seu contributo para reforçar a IDENTIDADE da cidade ou, pelo menos, faze-la ser compreendida e “sentida” consta ser a sua missão. Na sua essência, a captação da realidade passada (ou ficcionada) é o resultado da pesquisa e processo produtivos de ponta, como se dá a conhecer no making-of.

Na verdade, a experiência do Historium é completada no final do percurso expositivo (antes dos bares, loja gourmet e bookshop), com a tradicional exposição descritiva da simbologia apresentada nas acções. A cronologia interpreta a evolução da cidade até aos dias de hoje, com mostras da componente arquitectónica e construtiva da altura e como foi aqui recriada, recorda os eventos mais caracterizadoras da Europa nesse período e revela uma minuciosa e complexa investigação previa resultando da interpretação semiótica da obra de Jan van Eyck.

Exposição final 1Exposição final 2Exposição final 3Exposição final 5(fotografias: autora)

Toda a representação de Jan Van Eyck é simbólica, se interpretada à luz de vários níveis, mais ou menos discutível. Contudo, é inegável o valor manifestamente simbólico dos detalhes deste quadro e de outros do mesmo autor, onde a técnica de óleo revela uma série de detalhes eximiamente captados por van Eyck.

O mais curioso é que o sentido simbólico caracterizador do estilo do pintor, acaba por ser mimetizado na apresentação dos detalhes que ‘pintam’ esta narrativa, onde as cores, as pessoas, a Arquitetura, os animais,a indumentária e acessórios são ‘dissecados’ à luz da tradicional exposição que apresenta os resultados de pesquisas histórias e todo o making-of da história. Assim sendo, poder-se-ia dizer que tanto o legado simbólico de Jan van Eyck, como a experiência da reconstituição fictícia do Historium são profundamente inspiradores para a construção do imaginário social de toda uma época passada que justifica de todo o presente da cidade. Nesse sentido, Jan van Eyck torna-se também ele simbólico protagonista enquanto produtor da experiencia do “fazer sentir”.

Os aspectos de verosimilhança do quadro de Jan van Eyck são aqui reapropriados enquanto “base de dados” fidedigna para a construção de uma narrativa ficcional. A apropriação por processos digitais e tecnológicos pode, então, ser entendida como processo artístico e comunicativo. A missão do Historium em contemporaneizar a história como modo de esclarecer a identidade da cidade de Bruges – na história, Arte, modos de vida – é, assim, claramente constitutiva da IDENTIDADE que autojustifica a sua existência.

 «pode ver-se como a arte se alimenta de toda a civilização do seu tempo, refletida na irrepetível reação pessoal do artista, e nela estão presentes as maneiras de pensar, viver e sentir de toda uma época, a interpretação da realidade, a atitude perante a vida, os ideais e as tradições e as esperanças e as lutas de um período histórico», citando Luigi Pareyson, em “A definição da arte” de Umberto Eco (página 34).

Por outro lado, «A eficácia dessa representação, tal como de outras que a secundam ou se lhe contrapõem, mede-se pela capacidade de renovar uma narrativa a partir de imagens reconhecidas e legitimadas, de tal forma que o efeito novidade, podendo ser ilusório, seja capaz de convencer aqueles a quem se dirige.» (CUNHA: 166)

A experiência do Historium deve, então, ser entendida como uma hipótese para a recuperação de obras artísticas, de valor simbólico efetivo, mais valiosas por trazerem à luz da actualidade valores conceptuais e históricos que só revalorizam a própria dimensão cultural da obra.

Entender não a «obra de arte enquanto realidade isolada (objeto ou manifestação), mas o conjunto de etapas da sua criação e da sua recriação à medida que as pessoas a descobrem e apreciam.» (BECKER: 187)

Apesar de não ser nova, esta abordagem da obra de arte antiga recontextualizada (como acontece, por exemplo, no filme d’«A rapariga do brinco de pérola», embora sem a dimensão de ESPETÁCULO HIPERMÉDIA que o Historium proporciona; ou na recuperação da acessibilidade à arte com o Google Art Project) numa abordagem complexificada e enriquecida com os pormenores multissensoriais que caracterizam o nosso tempo, onde a obra original torna-se também objecto do presente, sendo que, como afirma Becker, « A obra continua a existir enquanto subsistirem as ideias que ela veicula.» (BECKER: 191).

O Historium adiciona pontos à comunicação em espaços expositivos pois, além da tradicional exposição dos temas toda uma nova forma de comunicar, modelando com “arte” a história e transpondo-a para o nosso tempo, tirando partido dos meios artísticos e criativos disponíveis na atualidade. Não querendo promover como única esta vertente, mas como uma possibilidade em crescente potencialidades a serem descobertas na construção das identidades e imaginário e na reificação da memória coletiva.

A experiência do Historium afirma-se, assim, com extrema importância no contexto dos processo sde fruição da arte pelo tempo e pelo espaço e nos processos de comunicação da história pela arte, onde se pode ver reflectida a proposta apelidade por Ana Lisa TOTA da «arte como tecnologia da memória», seja a Arte aqui entendida enquanto fim ou enquanto meio de comunicação de uma mensagem. Talvez porque à semelhança da obra artística de Van Eyck, o Historium explora a multisensoralidade dos meios atuais em toda a sua dimensão simbólica, acentuando o seu valor cultural, proporcionado uma verdadeira VIAGEM PELA CULTURA:

«(…) there are myriad interpretative ‘frames’ which can provide diferente but always partial understandings about art, and that their use in art museums is part of the production of knowledge about art and art history. (…) Like bounded spaces within the map, each with their own rules for representation, individual framings of objects (for exemple through Wall and audio texts) form the means of navigation through culture

(WHITEHEAD:  53)

 «A principal characteristic of art museum cartography is the focus of interpretation on works of art as objects which embody the history of art, a product-based approach where objects are understood as outcomes of the creative act – as products. This tends to hide from view the role of process within the production of such objects and the role of such objects and the role of such objects in artistic and other social processes. The issue is a historiographical one about how to map art contextually. It bears on the relative merit of questions about the transcendente, transhistorical status of art or the place of art as representation of and elemento within specific cultural and historical moments and processes.».

(WHITEHEAD:  36)

 

Conclui-se da experiência do Historium a amplitude crescente das novas potencialidades criativas, partindo da arte para construir com arte, modelando a história e retratando sociologicamente qualquer era da história da Humanidade, num processo que ultrapassa a dimsenão expositiva tradicional (do mero espectador), de encontra às potencialidades performativas dos novos meios comunicativos e atísticos em contexto de museu, em que se passa do ver ao sentir, pois que,

«(…) quando se fala de organismo artístico, se deve entender um fenómeno especial de comunicação, no qual uma determinada experiencia histórico-social coletiva é levada, através da mediação determinante e personalizante de um formador a uma pregnância especial, a uma condição de harmonicidade que a torna insubstituível e intraduzível mas que, em vez de a isolar, a apresenta como uma contração orgânica, aberta e reveladora, de toda uma experiência. »

(ECO, 42)


Trabalho de «Sociologia e Semiótica da Arte» de Ana Vilar (PG21715)

 

Referências bibliográficas e/ ou eletrónicas:
BECKER, Howard S. (2008) Mundos da Arte, Lisboa: Livros Horizonte
CARVALHO, Joana / RAPOSO, Rui (2012) «O potencial dos social média como ferramenta de comunicação dos museus com o seu público através do digital» in Revista Comunicando, v.1, n.1.
CRUZ, Maria Teresa Cruz (2000) Da nova sensibilidade artificial in http://bocc.ubi.pt/pag/cruz-teresa-sensibilidade-artificial.html
CUNHA, Luís (2008) «Configurações espaciais e regimes de pertença» in Comunicação Intercultural – perspectivas, dilemas e desafios
DEBORD, Guy (2012) A Sociedade do Espetáculo, Lisboa: Antígona.
DUTTON, Denis (2010) Arte e instinto, Rio de Mouro: Círculo de Leitores
ECO, Umberto (1995) A Definição da Arte, Lisboa: Ed. 70
MURRAY, James M. ( 2004) Bruges, The Cradle of Capitalism 1280-1390, Cambridge
RANCIÈRE, Jacques (2011) O destino das imagens, Lisboa: Orfeu Negro
TOTA, Anna Lisa (2000) A Sociologia da Arte: Do Museu Tradicional à Arte Multimédia, Lisboa: Editorial Estampa
WHITEHEAD, Christopher (2012) Interpretating art in museums & galleries, London: Routledge

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http://www.historium.be (site oficial do Historium)
http://www.jhna.org/images/pdfs/optical-symbolism-optical-description.pdf (sobre o quadro)
http://www.jeffreyvanhoutte.be/photo.php?photo_id=242& (cast “Liquid”)
http://www.imdb.com/title/tt2274052/fullcredits (IMDB)
http://belgiumshock.blogspot.pt/2012_11_01_archive.html (blog)

ARTESANATO: um encontro entre tradição e modernidade.

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O artesanato enquanto “arte menor” – uma primeira definição
O artesanato surge em primeiro plano como uma expressão de tradições populares, uma arte popular perspetivada como “arte menor” (Antunes, 1999), sendo igualmente um ofício, na medida em que se apresenta como um “modo de aprendizagem e de vida que se entretece, alimentando uma cultura incorporada de reprodução e preservação” (Santos cit. por Antunes, 1999, p.1). De facto, o artesanato funciona como artefacto transmissor de uma História cultural e, por inerência, constitui-se igualmente como transmissor de um conjunto de tradições, de costumes, habitualmente associados às várias regiões de um país.

Enquanto expressão de cultura e história e, sobretudo, enquanto ofício o artesanato tem vindo a alterar-se, não só na forma como se processa, mas também na maneira como tem vindo a definir-se, já que se tem assistido progressivamente à propagação de um novo conceito de artesanato, com vista a ultrapassar visões redutoras e que lhe foram atribuindo um papel marginal (Antunes, 1999). Enquanto setor de atividade, o artesanato mantém formas de produção e expressão com raízes predominantemente populares, de interesse considerável em termos sociais e culturais (Antunes, 1999). Isto significa que os processos produtivos e de organização assumem características singulares em cada região e estão em interdependência com as necessidades e valores do quotidiano moderno.

Máquina de fiar o linho e respetivos produtos, na Feira de Artesanato do Sr. de Matosinhos

Máquina de fiar o linho e respetivos produtos, na Feira de Artesanato do Sr. de Matosinhos

Socas com bordados. Feira de Artesanato do Sr. de Matosinhos

Socas com bordados. Feira de Artesanato do Sr. de Matosinhos

O artesanato à luz da legislação portuguesa – novas perspetivas
Do texto legal português pode depreender-se uma perspetiva cultural face ao artesanato e às artes e ofícios tradicionais, na medida em que estes são definidos como “formas de produção e de expressão lidimamente populares e diferenciadas de região para região” (Antunes, 1999, p.2). A primeira legislação sobre o setor, datada da década de 80, viria ainda a engrandecer a atividade enquanto “forma de resolução de problemas de emprego, pela absorção e fixação de parte dos excedentes de mão-de-obra, em particular no que se refere aos jovens, pela integração de deficientes, bem como pela minoração dos problemas de subemprego, nomeadamente na agricultura”. Posteriormente, a entrada na então Comunidade Económica Europeia (CEE) viria a exigir uma concretização das artes e ofícios tradicionais que compunham este setor de atividade, dando-se um alargamento das atividades que antes não eram vistas como “artesanato” e a conceção de direitos às empresas das artes tradicionais semelhantes aos das restantes pequenas empresas. Além disso, o artesão passa a ser identificado em relação àquilo que produz e ao modo como produz, privilegiando-se a pequena dimensão da sua empresa, o tipo de atividade, o domínios das técnicas manuais, ainda que não seja excluída a possibilidade do uso de máquinas, e a relação do trabalhador com as peças produzidas.

Assim, no sentido de se adaptar à sociedade globalizada, também esta arte popular procura a articulação entre diferentes tipos de saber, através da utilização de novos materiais e modelos modernos de elaboração das peças, dando-se assim um maior aproveitamento das novas tecnologias. Dá-se então a introdução de novos processos de produção, distribuição e formas de gestão da produtividade e a renovação e alargamento da variedade de produtos, bem como uma expansão dos mercados que lhe estão associados. Procura-se, desta forma, uma conjugação de elementos conhecidos e de novas funcionalidades, que se aplica à criatividade na conceção dos objetos, no seu design, etc (Antunes, 1999).

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Adaptação do padrão dos lenços minhotos a outros objetos, como carteiras e cintos. Feira de Artesanato do Sr. de Matosinhos

No que diz respeito às estruturas estatais, são várias as que se responsabilizam pela preservação e dignificação do artesanato português, o que se torna uma vantagem na medida em que se assiste a uma intervenção no setor, a nível de recursos humanos, científicos e financeiros. Contudo, esta mesma flexibilidade tende a originar tomadas de posição contraditórias e desadequadas, que pouco contribuem para a plena intervenção nesta área. Neste sentido, a Resolução do Conselho de Ministros nº 137/97 denota uma mudança de perspetiva face a decisões anteriormente tomadas, ao considerar que a expansão, renovação e valorização dos ofícios e microempresas tradicionais deve basear-se em novos princípios onde tradição e modernidade se interrelacionam e onde se combinem saberes tradicionais com novos saberes, concretamente nos novos domínios do design, das novas tecnologias de informação, do marketing e da capacidade empresarial em geral.

Tendo por base esta nova definição da atividade artesanal, são criados programas e iniciativas de desenvolvimento local que integram um conjunto de várias atividades desenvolvidas “utilizando mão-de-obra de qualidade e respeitando os processos e características tradicionais de produção” (Esteves, 2008). Graças à criação, em 1997, da iniciativa interministerial do PPART – Programa para a Promoção dos Ofícios e da Microempresas Artesanais – o enquadramento do sector do artesanato alterou-se profundamente.

Este Programa iniciou a criação das bases para o ordenamento jurídico e normativo do sector, de onde se destacam: A Carta de Artesão, que reconhece o domínio de saberes e técnicas inerentes à atividade do artesão e a sua dedicação, a título profissional; A Carta de Unidade Produtiva Artesanal, atribuída com apoio em critérios que se relacionam essencialmente com o reconhecimento do artesão enquanto responsável da produção, e com a dimensão da empresa (Esteves, 2008). Este reconhecimento da unidade produtiva artesanal é condição essencial para a aquisição de quaisquer apoios ou benefícios por parte do Estado. Paralelamente, existe ainda o Registo Nacional do Artesanato, destinado à inscrição dos artesãos e das unidades produtivas artesanais e que, por outro lado, possibilitará a produção de dados estatísticos que permitam obter informação rigorosa e atualizada sobre o sector.

Artesanato tradicional vs. Artesanato urbano
A globalização da produção cultural atribuiu um novo significado aos objetos e às ideias que resultam da construção de um sentido de lugar ou singularidade cultural (Arantes cit. Esteves, 2008). Desta forma, as fronteiras simbólicas, flexíveis e permeáveis são produzidas através da articulação entre símbolos originais e de natureza híbrida, sendo a multiculturalidade uma das características essenciais das culturas contemporâneas (Esteves, 2008).

Compreender as culturas populares e a sua relação com a modernidade, numa perspetiva de configurar as transformações no mercado simbólico, deve ter em consideração, não apenas o desenvolvimento do popular e do culto, mas também uma análise das suas convergências. Sendo o artesanato uma das representações da cultura popular que tem lugar na atualidade permite a representação das formas passadas e expressa a reformulação dessas mesmas formas, valores e identidades, através da produção de novas formas (Esteves, 2008). Assim, parece existir uma transformação contínua enquanto reflexo do modo como as culturas populares são pensadas e valorizadas estética e culturalmente e concretizadas através de políticas culturais.

Paralelamente, a alteração dos valores de uso e das representações dos bens de consumo reconstrói e torna funcional uma identidade do produto, ao mesmo tempo que requalifica o artesão, agora sujeito às leis do mercado turístico, levando à mercantilização cultural do artesanato tradicional, sobretudo no que diz respeito à sua produção, difusão e consumo. Tal como explica Esteves (2008): “Esta evolução coloca grandes desafios à qualificação dos artesãos, quer aos que estão em exercício quer aos que irão entrar no mercado de trabalho, exigindo conhecimentos artísticos, tecnológicos e de gestão.” Neste sentido, se se pretende a preservação e conservação da cultura e dos seus artefactos, estes deverão sobreviver através da revisão, transformação e adaptação das suas competências e dos ofícios tradicionais às novas circunstâncias de mudança, de modo a que práticas antigas possam ter novos significados e novos usos. (Esteves, 2008).

Adaptação do padrão dos Lenços de Namorados a uma caixa de óculos.

Adaptação do padrão do Lenços de Namorados a uma caixa de óculos.

Conclusão
O artesanato urbano permite, então, intervir para que o produto chame ainda mais a atenção do mercado, fazendo uso da novas matérias-primas, do design, de novas estratégias de produção, venda e difusão, etc (Silveira; Cunha, 2011). Assim, o artesanato urbano, também definido como artesanato contemporâneo ou de criação, surge como uma fusão entre urbanidade, criatividade, tradição e modernidade. A utilização do design na produção artesanal associa um maior valor comercial aos produtos agora inseridos na atualidade, sem que estes percam a sua identidade cultural tradicional.

Perante esta conceptualização, os artesãos por seu lado constroem a sua base de identidade profissional, tornando-se cada vez mais criadores das suas obras: “Diante de uma sociedade onde as oportunidades de trabalho são poucas, o artesanato urbano traz a possibilidade e motivação financeira para exercer sua profissão e ter um rendimento através da venda de suas criações” (Silveira; Cunha, 2011) Além disso, o fator da introdução do design nestes produtos propicia uma maior competitividade no mercado. Num contexto de globalização e de hegemonia das novas tecnologias, a busca por novos conceitos torna-se premente e é neste contexto que o artesanato urbano vem colmatar a necessidade constante de mudança e atualização, onde o criador possui competências mais amplas e assume o papel de futuro empresário, dono do seu negócio (Silveira; Cunha, 2011).

 Bibliografia

ANTUNES, Lina (1999). “Das artes e ofícios tradicionais: contributos para um enquadramento normativo legal”, Observatório das Actividades Culturais, OBS, nº 6, p. 17-22. [Em linha] Disponível em: http://www.oac.pt/pdfs/OBS_6_Das%20Artes%20e%20Of%C3%ADcios%20Tradicionais.pd

ESTEVES, Denise Gayou Lima Reis. “As Artes e Ofícios Tradicionais na Contemporaneidade – Práticas (in) Populares?”. Em Congresso Português de Sociologia, VI, 2008. [Em linha] Disponível em: http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/443.pdf

SILVEIRA, Elaine; CUNHA, Joana. “O Artesanato urbano e a sua relação com o artesanato tradicional e o design”. Em Congresso Internacional de Pesquisa em Design, VI, 2011. [Em linha] Disponível em: http://hdl.handle.net/1822/14949

 Trabalho de Ana Veiga Ferreira (PG21721)

O Lugar no plural

“A nossa relação com o espaço e o com tempo tem sofrido transformações significativas, acompanhando o ritmo acelerado do desenvolvimento das tecnologias de informação, a diversidade de estímulos visuais, o surgir de novos padrões de consumo e de mobilidade, entre outros, gerados pelos sistemas globais. Estes acontecimentos tendem a condicionar, de modos específicos, a experiência pessoal, directa, com o mundo à nossa volta” (Traquino, 2010: 19) – e os Lugares, funcionam como “pontos de referência a partir dos quais nos podemos posicionar e estruturar” (Traquino, 2010: 8).

“Vivemos o agora separado do aqui, o tempo separado do espaço, como estando simultaneamente em todo o lado em em lado algum” (Traquino, 2010: 17).

São vários os sociólogos que abordam a questão da dissociação espaço/tempo na modernidade. Aqui interessa ficar com a ideia de que a noção de pertencer a um lugar se tornou particularmente complexa no mundo contemporâneo, pois em muitas situações o mundo contemporâneo compromete a possibilidade de proximidade física com o Lugar. Sentimos-nos a pertencer a vários lugares e, muitas vezes, em simultâneo – isto deve-se, em grande parte, ao uso das novas tecnologias. A Internet permite que estejamos em vários lugares sem sairmos do próprio espaço em que nos encontramos fisicamente (entre quatro paredes, tantas vezes!). Surgem lugares imateriais, é certo, em que estamos presentes sem o estarmos, em que encontramos pessoas sem as encontrar, em que nos divertimos, amamos, odiamos, choramos, sofremos, vivemos, nos realizamos ou estamos sozinhos – tudo isto sem realmente o estar. Que realidade irreal esta!

As tecnologias de informação transformam o mundo da Internet num autêntico mundo paralelo ao “real”, ao físico. (Web)Site, Myspace, Blogosfera, Cyberspace, Domínio, Endereço, Homepage, (redes sociais como o Facebook, em que estamos) – o vocabulário deste mundo virtual é pautado por conceitos que se prendem com espaço e que se transformam em Lugares pela nossa experiência deles, pelas nossas vivências e muitas vezes pelo grau de afectividade e tempo que lhes cedemos.

Graças às novas tecnologias “estamos no quintal de cada um (na expressão de Featherstone)” (Traquino, 2010: 13).

(Imagem retirada daqui)

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Do Lugar para o Mundo


(Imagem retirada daqui)

Ainda a propósito da comunicação levada a cabo por Carlos Martins – Director Executivo da Capital Europeia da Cultura Guimarães 2012 – e, sabendo que hoje decorrerá a Apresentação do Programa Cultural da mesma, ficou uma ideia a pairar no ar: a possibilidade que temos de, aqui e agora, nos reencontrarmos, enquanto Cultura ou enquanto Identidade, se quisermos.

Tempo. Espaço. Lugar. Memória. Experiência.

Carlos Martins deixou clara a ideia de que o Projecto parte de Guimarães, parte do Lugar, não porque estamos de alguma forma limitados e temos de partir daqui, mas antes porque Aqui, estamos nós, é daqui que temos de partir – do nosso Lugar, para o Mundo.

A nossa relação com o espaço e o tempo tem sofrido transformações significativas, acompanhando o ritmo acelerado do desenvolvimento das tecnologias de informação, a diversidade de estímulos visuais, o surgir de novos padrões de consumo e de mobilidade, entre outros, gerados pelos sistemas globais. Estes acontecimentos tendem a condicionar, de modos específicos, a experiência pessoal, directa, com o mundo à nossa volta e os Lugares, funcionam como pontos de referência a partir dos quais nos podemos posicionar e estruturar.

Espaço e Lugar diferem.

Um Lugar emerge do espaço pela sua vivência e memória inscrita; destaca-se no Espaço enquanto superfície pela incidência da marca humana através do tempo. O lugar, aquele Lugar, pode permanecer imaterial na memória. Assim, os Lugares adquirem certa mobilidade “viajando” com as pessoas que os viveram.

Guimarães-Lugar “viajará”  com as pessoas que o viveram, que o experienciaram.

Notas:
Vários autores abordam o Lugar. Destacarei apenas um (sem prejuízo de outros): Relph, Edward, Place and Placelessness (1976).

(Heidi Martins)

Tibães… Espaço de memória de uma comunidade

No âmbito do mestrado “Comunicação, arte e cultura”, no dia 15 de Novembro tivemos uma aula de campo no Mosteiro de Tibães.

A visita conduzida pela Dra. Aida Mata (antiga Diretora do Mosteiro), contou ainda com a presença Dr. Mário Brito (Coordenador atual), do Prof. Miguel Bandeira (Presidente do Instituto de Ciências Sociais) e Prof. Albertino Gonçalves (Diretor do mestrado).

Início da visita

Seguem-se algumas reflexões e fotografia acerca desta aula.

Bourdieu e Alain Darbel (1969) falaram-nos na dificuldade em alargar e aumentar o público que frequenta os museus e exposições.

Procuraram na sua obra, demonstrar que a maior ou menor apetência pela frequência dos museus e acontecimentos culturais, o “amor pela arte”, depende pouco dos níveis de rendimento ou dos índices de propriedade económica. Não é tornando os museus economicamente mais acessíveis, ou até com entradas gratuitas, que se consegue aumentar a afluência de público a estes espaços culturais, porque os factores condicionantes são de outra ordem, nomeadamente cultural e simbólica. Segundo os mesmos autores, o que condiciona a probabilidade de ir aos museus é o capital cultural, mais precisamente o capital escolar dos pais e, sobretudo, da própria pessoa.

Coro Alto – Cadeira central - Lado inferior com pequena mísula com forma fantasiosa

Margarida Faria (1995) contraria este determinismo de P. Bourdieu e A. Darbel. Defende que os públicos dos museus se têm vindo a alargar graças ao que Norbert Elias (1989) designou por “um processo de democratização funcional”. Certos grupos sociais entram nos museus porque sofreram os efeitos de um processo civilizacional.

Panorâmica no interior da igreja

Em Tibães assistimos a uma grande aproximação da população local ao Mosteiro que demonstra um grande respeito e orgulho por este património. O segredo talvez esteja nas palavras de Santo Agostinho, mas proferidas pela Doutora Aida Mata: “existem três tempos, passado – memória, presente – vida e futuro – espera”. No património cultural as memórias são recriadas e, para a Dra. Aida Mata, o museu desenvolveu-se assentando em três pilares: ESCOLA, MUSEU e COMUNIDADE.

Maquete do mosteiro

A História deste museu passa por uma grande aproximação à comunidade, pela valorização do seu património cultural e na sua inserção nas actividades do Mosteiro de Tibães. São disso exemplo a valorização da agricultura e dos instrumentos de trabalho, do ciclo dos trabalhos do campo: vindimas, apanha do linho, desfolhada, festa de S. Bento, etc.

Deste modo, a comunidade não se sente “excluída” deste local de cultura, sente, pelo contrário, que a sua memória passa por aqui!

Trilhos do tempo gravados na pedra que patenteiam a história do Mosteiro de Tibães

By Conceição Gonçalves, Celeste Semanas e José Manuel Costa

Arte com música

Interessante este apelo, e desafio, da Tate Modern a algumas bandas musicais.

TATE MODERN, “Tate Tracks”, UK, Fallon (London)

Albertino

Suportes Digitais: memória ou esquecimento?


© Rose Borschovski aka Saskia Boddeke

“Uma obra de arte, não importa quão antiga e clássica, é realmente, e não apenas potencialmente, uma obra de arte quando vive em qualquer experiência individualizada […]” (Dewey cit. por Brandi, 2006:2).

Desta forma, toda a obra de arte é recriada, independentemente do seu suporte ou consistência material. Esta instância estética, que Cesare Brandi sobrepõe à consistência física, ganha, no cibermundo, uma importância acrescida, tanto mais que a ubiquidade e a desterritorialização relegam a dimensão histórica de tempo e lugar para um plano difuso e efémero. Por outro lado, a questão da conservação ou restauro da obra de arte está excluída pela natureza imutável da sua materialidade. Mas não será que o ciberespaço coloca questões análogas às de natureza orgânica?

Se o que subsiste para a obra de arte digital é um conjunto de informação binária dependente de um suporte e protocolo digitais, dir-se-á que a consistência material da obra de arte digital é ela própria multiplicada por um infinito número de réplicas, tantas quantas o espaço de armazenamento permitir. Platão, no diálogo Meno, reduz a memória a uma técnica de recordar a partir de uma dada informação. Esta techne de recordar “requer uma substância ou material sobre o qual trabalhar e ao qual dar forma […]” (Caygill, 2006:53). Poderá o ciberespaço ser uma técnica de recordar a partir de um arquivo global? Estará a hierarquia associada ao arquivo a dissolver-se? (Caygill, 2006).

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