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Visita ao Theatro Circo, um duo de sensações.

A tarde era chuvosa e duvidosa, pois ao mesmo tempo que chovia, parava e depois retornava a molhar. Chegamos meio molhados, mas à medida que o teatro ia se mostrando, íamos secando e surgia uma incrível vontade de mergulhar no mundo da casa de espetáculo que estávamos a desvendar. Nessa tarde misturamos física com intuição.

Adriano Ferreira Borges

Na entrada da sala principal, nos deparámos com a imagem clássica das máscaras teatrais, simbolizando a comédia e a tragédia. Segundo o professor de teatro Patrice Pavis “a máscara deforma propositadamente a fisionomia humana, desenha uma caricatura e refunde totalmente o semblante.” Foi com essa transformação sugerida pelas máscaras que simbolicamente nos modificámos ao passar nesse portal, rumo ao palco e outras entranhas desse mundo mágico, que mistura a comédia e a tragédia com todas as nuances da vida.

Adriano Ferreira Borges

Essa duplicidade nos acompanhou durante a tarde. Começando pelo próprio nome do espaço. O suntuoso Theatro Circo tem esse nome porque na sua fundação foi decidido que abrigaria espetáculos de teatro e de circo. Assim aconteceu durante anos. Até mastros enormes eram colocados no centro da sala para prenderem as estruturas circenses. Animais entravam por passagem especial com o nome de “porta dos cavalos”. A versatilidade da sala está presente até hoje, não com colocação de mastros dos circos, mas com apresentações variadas de diversas linguagens e estilos artísticos.

Com o diretor técnico Celso Ribeiro e o funcionário Ricardo Rosário, passámos pelo salão nobre, camarins, bastidores e aprendemos sobre física: “O contrapeso tem que ter o peso duplicado do cenário em questão. Desta maneira, um único maquinista consegue levantar rapidamente uma tonelada”. A física, nesse caso, pode contribuir com o discurso do artista em sua obra de arte e, para além disso, pode criar condições para que o artista utilize de sua intuição dentro da obra. O filósofo tcheco Vilém Flusser (1) escreve que em grego “tekné” significa tanto arte como técnica.

Diante de muitas informações e curiosidades ficamos a saber que existia um convento onde hoje é o Theatro Circo. Por essa razão, brinca-se com as possíveis aparições das freiras no edifício. Outra curiosidade é que existia, até a década de setenta, um café chamado Bristol, no saguão anexo ao teatro, que por motivos financeiros foi vendido para uma instituição bancária, que funciona até hoje ao lado do teatro.

Ao final, tivemos uma agradável conversa com o diretor artístico Paulo Brandão e a responsável pela comunicação Luciana Queirós da Silva. Falou-se das estratégias da comunicação e dos públicos a serem alcançados e principalmente da construção da programação. O diretor artístico utiliza-se muito da sua intuição para construir a programação e mostra-se sensível e atento a novas tendências mundiais. O pragmatismo necessário à comunicação tem diálogo estreito com a intuição na criação da programação.

A conversa aconteceu nas confortáveis poltronas vermelhas da centenária sala principal. O encantamento do mergulho inicial repetiu-se ao fechar as cortinas. Saímos com a certeza de que, entre física e intuição, é preciso muita verdade para se construir sonhos.

Entre secos e molhados… entre comédias e tragédias encantaram-se todos.

  1. B. Vilém Flusser(Praga, 1920 — Praga, 1991) foi um filósofo tcheco, naturalizado brasileiro. Autodidata, durante a Segunda Guerra, fugindo do nazismo, mudou-se para o Brasil, estabelecendo-se em São Paulo, onde atuou por cerca de 20 anos como professor de filosofia, jornalista, conferencista e escritor.

 

A visita ao Theatro Circo, Braga,  realizou-se no dia 28 de Março de 2018

Texto de Fabiano Assis e fotografias de Adriano Ferreira Borges.

Ainda Melgaço

Captura de ecrã de 2014-06-18 18:47:28

A 2 – revista que acompanha o Público ao domingo – publicou um trabalho da jornalista Ana Cristina Pereira sobre a fronteira e outros temas adjacentes que foram discutidos entre os alunos do MCAC e a própria autora na visita à vila de Melgaço.

O trabalho, que saiu no domingo último, pode ser consultado aqui.

ARTESANATO: um encontro entre tradição e modernidade.

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O artesanato enquanto “arte menor” – uma primeira definição
O artesanato surge em primeiro plano como uma expressão de tradições populares, uma arte popular perspetivada como “arte menor” (Antunes, 1999), sendo igualmente um ofício, na medida em que se apresenta como um “modo de aprendizagem e de vida que se entretece, alimentando uma cultura incorporada de reprodução e preservação” (Santos cit. por Antunes, 1999, p.1). De facto, o artesanato funciona como artefacto transmissor de uma História cultural e, por inerência, constitui-se igualmente como transmissor de um conjunto de tradições, de costumes, habitualmente associados às várias regiões de um país.

Enquanto expressão de cultura e história e, sobretudo, enquanto ofício o artesanato tem vindo a alterar-se, não só na forma como se processa, mas também na maneira como tem vindo a definir-se, já que se tem assistido progressivamente à propagação de um novo conceito de artesanato, com vista a ultrapassar visões redutoras e que lhe foram atribuindo um papel marginal (Antunes, 1999). Enquanto setor de atividade, o artesanato mantém formas de produção e expressão com raízes predominantemente populares, de interesse considerável em termos sociais e culturais (Antunes, 1999). Isto significa que os processos produtivos e de organização assumem características singulares em cada região e estão em interdependência com as necessidades e valores do quotidiano moderno.

Máquina de fiar o linho e respetivos produtos, na Feira de Artesanato do Sr. de Matosinhos

Máquina de fiar o linho e respetivos produtos, na Feira de Artesanato do Sr. de Matosinhos

Socas com bordados. Feira de Artesanato do Sr. de Matosinhos

Socas com bordados. Feira de Artesanato do Sr. de Matosinhos

O artesanato à luz da legislação portuguesa – novas perspetivas
Do texto legal português pode depreender-se uma perspetiva cultural face ao artesanato e às artes e ofícios tradicionais, na medida em que estes são definidos como “formas de produção e de expressão lidimamente populares e diferenciadas de região para região” (Antunes, 1999, p.2). A primeira legislação sobre o setor, datada da década de 80, viria ainda a engrandecer a atividade enquanto “forma de resolução de problemas de emprego, pela absorção e fixação de parte dos excedentes de mão-de-obra, em particular no que se refere aos jovens, pela integração de deficientes, bem como pela minoração dos problemas de subemprego, nomeadamente na agricultura”. Posteriormente, a entrada na então Comunidade Económica Europeia (CEE) viria a exigir uma concretização das artes e ofícios tradicionais que compunham este setor de atividade, dando-se um alargamento das atividades que antes não eram vistas como “artesanato” e a conceção de direitos às empresas das artes tradicionais semelhantes aos das restantes pequenas empresas. Além disso, o artesão passa a ser identificado em relação àquilo que produz e ao modo como produz, privilegiando-se a pequena dimensão da sua empresa, o tipo de atividade, o domínios das técnicas manuais, ainda que não seja excluída a possibilidade do uso de máquinas, e a relação do trabalhador com as peças produzidas.

Assim, no sentido de se adaptar à sociedade globalizada, também esta arte popular procura a articulação entre diferentes tipos de saber, através da utilização de novos materiais e modelos modernos de elaboração das peças, dando-se assim um maior aproveitamento das novas tecnologias. Dá-se então a introdução de novos processos de produção, distribuição e formas de gestão da produtividade e a renovação e alargamento da variedade de produtos, bem como uma expansão dos mercados que lhe estão associados. Procura-se, desta forma, uma conjugação de elementos conhecidos e de novas funcionalidades, que se aplica à criatividade na conceção dos objetos, no seu design, etc (Antunes, 1999).

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Adaptação do padrão dos lenços minhotos a outros objetos, como carteiras e cintos. Feira de Artesanato do Sr. de Matosinhos

No que diz respeito às estruturas estatais, são várias as que se responsabilizam pela preservação e dignificação do artesanato português, o que se torna uma vantagem na medida em que se assiste a uma intervenção no setor, a nível de recursos humanos, científicos e financeiros. Contudo, esta mesma flexibilidade tende a originar tomadas de posição contraditórias e desadequadas, que pouco contribuem para a plena intervenção nesta área. Neste sentido, a Resolução do Conselho de Ministros nº 137/97 denota uma mudança de perspetiva face a decisões anteriormente tomadas, ao considerar que a expansão, renovação e valorização dos ofícios e microempresas tradicionais deve basear-se em novos princípios onde tradição e modernidade se interrelacionam e onde se combinem saberes tradicionais com novos saberes, concretamente nos novos domínios do design, das novas tecnologias de informação, do marketing e da capacidade empresarial em geral.

Tendo por base esta nova definição da atividade artesanal, são criados programas e iniciativas de desenvolvimento local que integram um conjunto de várias atividades desenvolvidas “utilizando mão-de-obra de qualidade e respeitando os processos e características tradicionais de produção” (Esteves, 2008). Graças à criação, em 1997, da iniciativa interministerial do PPART – Programa para a Promoção dos Ofícios e da Microempresas Artesanais – o enquadramento do sector do artesanato alterou-se profundamente.

Este Programa iniciou a criação das bases para o ordenamento jurídico e normativo do sector, de onde se destacam: A Carta de Artesão, que reconhece o domínio de saberes e técnicas inerentes à atividade do artesão e a sua dedicação, a título profissional; A Carta de Unidade Produtiva Artesanal, atribuída com apoio em critérios que se relacionam essencialmente com o reconhecimento do artesão enquanto responsável da produção, e com a dimensão da empresa (Esteves, 2008). Este reconhecimento da unidade produtiva artesanal é condição essencial para a aquisição de quaisquer apoios ou benefícios por parte do Estado. Paralelamente, existe ainda o Registo Nacional do Artesanato, destinado à inscrição dos artesãos e das unidades produtivas artesanais e que, por outro lado, possibilitará a produção de dados estatísticos que permitam obter informação rigorosa e atualizada sobre o sector.

Artesanato tradicional vs. Artesanato urbano
A globalização da produção cultural atribuiu um novo significado aos objetos e às ideias que resultam da construção de um sentido de lugar ou singularidade cultural (Arantes cit. Esteves, 2008). Desta forma, as fronteiras simbólicas, flexíveis e permeáveis são produzidas através da articulação entre símbolos originais e de natureza híbrida, sendo a multiculturalidade uma das características essenciais das culturas contemporâneas (Esteves, 2008).

Compreender as culturas populares e a sua relação com a modernidade, numa perspetiva de configurar as transformações no mercado simbólico, deve ter em consideração, não apenas o desenvolvimento do popular e do culto, mas também uma análise das suas convergências. Sendo o artesanato uma das representações da cultura popular que tem lugar na atualidade permite a representação das formas passadas e expressa a reformulação dessas mesmas formas, valores e identidades, através da produção de novas formas (Esteves, 2008). Assim, parece existir uma transformação contínua enquanto reflexo do modo como as culturas populares são pensadas e valorizadas estética e culturalmente e concretizadas através de políticas culturais.

Paralelamente, a alteração dos valores de uso e das representações dos bens de consumo reconstrói e torna funcional uma identidade do produto, ao mesmo tempo que requalifica o artesão, agora sujeito às leis do mercado turístico, levando à mercantilização cultural do artesanato tradicional, sobretudo no que diz respeito à sua produção, difusão e consumo. Tal como explica Esteves (2008): “Esta evolução coloca grandes desafios à qualificação dos artesãos, quer aos que estão em exercício quer aos que irão entrar no mercado de trabalho, exigindo conhecimentos artísticos, tecnológicos e de gestão.” Neste sentido, se se pretende a preservação e conservação da cultura e dos seus artefactos, estes deverão sobreviver através da revisão, transformação e adaptação das suas competências e dos ofícios tradicionais às novas circunstâncias de mudança, de modo a que práticas antigas possam ter novos significados e novos usos. (Esteves, 2008).

Adaptação do padrão dos Lenços de Namorados a uma caixa de óculos.

Adaptação do padrão do Lenços de Namorados a uma caixa de óculos.

Conclusão
O artesanato urbano permite, então, intervir para que o produto chame ainda mais a atenção do mercado, fazendo uso da novas matérias-primas, do design, de novas estratégias de produção, venda e difusão, etc (Silveira; Cunha, 2011). Assim, o artesanato urbano, também definido como artesanato contemporâneo ou de criação, surge como uma fusão entre urbanidade, criatividade, tradição e modernidade. A utilização do design na produção artesanal associa um maior valor comercial aos produtos agora inseridos na atualidade, sem que estes percam a sua identidade cultural tradicional.

Perante esta conceptualização, os artesãos por seu lado constroem a sua base de identidade profissional, tornando-se cada vez mais criadores das suas obras: “Diante de uma sociedade onde as oportunidades de trabalho são poucas, o artesanato urbano traz a possibilidade e motivação financeira para exercer sua profissão e ter um rendimento através da venda de suas criações” (Silveira; Cunha, 2011) Além disso, o fator da introdução do design nestes produtos propicia uma maior competitividade no mercado. Num contexto de globalização e de hegemonia das novas tecnologias, a busca por novos conceitos torna-se premente e é neste contexto que o artesanato urbano vem colmatar a necessidade constante de mudança e atualização, onde o criador possui competências mais amplas e assume o papel de futuro empresário, dono do seu negócio (Silveira; Cunha, 2011).

 Bibliografia

ANTUNES, Lina (1999). “Das artes e ofícios tradicionais: contributos para um enquadramento normativo legal”, Observatório das Actividades Culturais, OBS, nº 6, p. 17-22. [Em linha] Disponível em: http://www.oac.pt/pdfs/OBS_6_Das%20Artes%20e%20Of%C3%ADcios%20Tradicionais.pd

ESTEVES, Denise Gayou Lima Reis. “As Artes e Ofícios Tradicionais na Contemporaneidade – Práticas (in) Populares?”. Em Congresso Português de Sociologia, VI, 2008. [Em linha] Disponível em: http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/443.pdf

SILVEIRA, Elaine; CUNHA, Joana. “O Artesanato urbano e a sua relação com o artesanato tradicional e o design”. Em Congresso Internacional de Pesquisa em Design, VI, 2011. [Em linha] Disponível em: http://hdl.handle.net/1822/14949

 Trabalho de Ana Veiga Ferreira (PG21721)

Uma interpretação da cultura portuguesa dos séculos XV e XVI a partir da leitura do Naufrágio de Sepúlveda

A grande epopeia dos Descobrimentos

Hoje como antes, não parece subsistir grande dúvida em relação à grandeza dos Descobrimentos e à sua pesada herança para nós portugueses, tendo em conta a reduzida dimensão de Portugal como nação.  Durante pelo menos cem anos, Portugal foi o «contaminador do Mundo»[1], fazendo com que a civilização cristã se impusesse às civilizações islâmicas e judaicas – na época as que reuniam grande parte do saber –, o que lhe permitiu destacar-se  como país no mundo ocidental.

O enquadramento deste acontecimento – o mais marcante de sempre para o povo português -, através de uma leitura retrospectiva da nossa História, levar-nos-á a encontrar remotas razões que adquirem agora uma renovada dimensão. Reforçam-se assim as condições para o desenvolvimento de uma consciência identitária que faz de Portugal e dos portugueses um povo com uma missão espiritual, quer através do renascer do mito de Ourique, quer através de toda a importância conferida à Ínclita Geração[2]. Fernão Lopes, na Crónica de D. João I, fala de um “evangelho português” e de uma “sétima idade do mundo”, comparando a acção do Mestre de Avis e de Nun’Álvares com a de Cristo, o messias, e de S. Pedro, ainda que «com ousança de falar, como quem jogueta»[3]. Essa missão de carácter espiritual terá sido a razão oficialmente tida pelos cronistas ao serviço do rei – e de resto a mais convincente para a mentalidade do tempo – para propagar um plano de desenvolvimento da história, no qual o Cristianismo representaria a perspectiva de valores mais realizadores para a humanidade. Portugal assumia-se como «o paladino da fé católica , e a expansão mundial da Fé era a sua vocação própria , a razão de ser da sua história.»[4]. Este discurso oficial vai-se impondo aos cronistas, que se apoiam em episódios notáveis do reinado de D. João I, como é exemplo a tomada de Ceuta, no norte de África, em 1415 [5].

Falar das verdadeiras causas da nossa epopeia e ignorar outras encapsuladas razões, seria amputar uma das faces da história, aquela que, pela voz do Velho do Restelo, vem lembrar: se desejas combater pela religião de Cristo não tens aí Mouros com quem combater? Se desejas conquistar territórios e obter riquezas não têm eles terras e riqueza mais que suficientes? Se queres alcançar glória pelos feitos de guerra, não são eles valorosos no combate?[6] À causa cristã juntam-se as causas militares e político-económicas, com a corte portuguesa a colher frutos de um mercantilismo para o qual, segundo os seus críticos, não estaria vocacionada. Terá sido este último aspecto, juntamente com o absolutismo da monarquia e a Inquisição, que levou Alexandre Herculano a afirmar que «(…) a parte positiva, criativa e de certa maneira orgânica da história de Portugal acabou no século XV.»[7].  Mais tarde, Antero de Quental apoiar-se-ia na teoria para concluir serem esses factores as «causas da decadência dos povos peninsulares»[8].

Revestindo-se esta expansão de extrema importância para o Ocidente, foi, incontornavelmente, o acontecimento que mais modelou o carácter nacional e, seguramente, o primeiro passo da hoje tão falada globalização. É ao abrigo da nossa Santa Missão que os Descobrimentos se cumprem, não sem que um incómodo e trágico preço seja pago.

A Literatura de Viagens

A constituição do vasto império português será tema fértil para uma literatura que se dedicará a construir a História destas conquistas. Os investigadores apelidam-na de Literatura de Viagens ou Literatura dos Descobrimentos. Segundo José Manuel Garcia, pela multiplicidade de realidades patenteadas em tais escritas, «parece mais adequado falar numa Literatura Portuguesa da Expansão»[9]. São textos com um elevado valor histórico e humano que reproduzem, de uma forma mais directa, o comportamento dos seus intervenientes e a vivência de uma época. Nestas narrativas não existem filtros de origem política ou literária, o que faz deles excelentes documentos de investigação[10]. Desde logo, o interesse manifestado pelo português médio neste tipo de literatura encontra equivalente, na sociedade de hoje, na curiosidade manifestada pelos assuntos que dizem respeito a factos da vida social e política, sobretudo no que diz respeito a acontecimentos nefastos para os seus intervenientes. Nesta classe de literatura encontra-se a História Trágico-Marítima.

A História Trágico-Marítima e o Naufrágio de Sepúlveda

A História Trágico-Marítima (Lisboa, 1735-36), organizada por Bernardo Gomes de Brito, é uma antologia de doze relatos de naufrágios ocorridos durante a epopeia dos Descobrimentos. São estes os relatos do reverso da medalha e dos quais faz parte o Naufrágio de Sepúlveda. A narrativa – de autoria anónima[11] – conta o naufrágio do galeão São João que, comandado por D. Manoel de Sousa Sepúlveda, parte de Cochim rumo a Lisboa, vindo a naufragar nas costas da Terra do Natal.

A partir do texto, retiram-se episódios que constituem sinais claros da cultura portuguesa dos séculos XV e XVI e que, em alguns casos, encontram expressão na contemporaneidade.

No prólogo, aparecem já referências que testemunham o carácter religioso da cultura portuguesa:

“COUSA é esta, que se conta neste naufrágio, para os homens muito temerem os castigos do Senhor e serem bons cristãos, trazendo o temor de Deus diante dos olhos, para não quebrar seus mandamentos”.

A componente religiosa e didascálica encontrar-se-á ao longo de toda a narrativa em expressões como “pôr tudo nas mãos de Deus”, “seja o que Deus quiser” ou “a Nossa Senhora que rogue por todos”. Esta maneira muito sui generis de ser português é uma marca imbuída de uma perenidade que se revela nos dias de hoje e uma das características incontornáveis da nossa certeza de que os males só acontecem aos outros. Uma certeza de que a nossa nau, por milagre de Deus, se sustentará sobre o mar. E se, por acaso, algum mal nos acontece, é um “estado a que por nossos pecados somos chegados”.

Uma missão tão religiosa e providencial parece encontrar oposição na desmesurada ambição dos portugueses. Esta ambição consubstanciar-se-á em quantidades de carga largamente superiores ao aconselhável, pelo que “se havia de ter muito cuidado pelo grande risco que correm as naus muito carregadas”. Em cada viagem, o propósito era o de trazer a maior quantidade (im)possível de bens para o reino, o que era feito, segundo António Sérgio, «atulhando o galeão de fardaria em barda, que subia no convés até altura dos castelos»[12]. A falta de manutenção e envelhecimento sucessivo da frota, a má preparação dos pilotos, faz com que as naus já saíam do Tejo a «meter água em jacto»[13].

Para este comportamento e modo de ser português existe uma explicação desculpabilizadora: o fatalismo. As responsabilidades do naufrágio são atribuídas ao destino e à fortuna adversa, o que se verifica em expressões como “visto não haver outro remédio” ou “como já estava de cima”[14], servindo como forma de desviar as responsabilidades de putativos destinatários[15].

Mas há qualidades do povo português que uma tão grande tragédia põe a descoberto. Refiro-me ao espírito de entreajuda e solidariedade entre as várias ordens sociais que navegam a bordo do S. João. É como se, em momentos de crise, desaparecessem barreiras, fazendo com que todos remem no mesmo sentido. Não encontraria melhor exemplo do que o proferido pelo piloto durante a intempérie: «Irmãos, antes que a nau abra e se nos vá ao fundo, quem quiser embarcar comigo naquele batel o poderá fazer». Poderá daqui erradamente decorrer que não eram respeitadas hierarquias. De facto, todas as acções ocupam o espaço que lhes é determinado pela condição social, sendo a morte a única fatalidade que não escolhe cor de pele.

Apesar de toda a fatalidade que se abate sobre a tripulação, uma certa dose de ingenuidade contribui para o acelerar de um destino trágico. Talvez fruto do desespero, D. Manuel de Sousa é induzido, pelo Rei cafre, a dispersar o grupo sobrevivente e a entregar armas. Terá sido o princípio de seu fim, de sua esposa D. Leonor e de seus filhos, constituindo-se num drama que é elucidativo do outro lado dos factos. Contrastando com a triste sorte da maioria da tripulação, o episódio de Pantaleão de Sá que, fazendo-se passar por médico, cura a chaga do Rei cafre, vem-nos lembrar quantas vezes, na nossa cultura, a atitude charlatã colhe os seus indevidos frutos.

Reflexão Final

A Literatura de Viagens veio colocar a nu o elevado preço a pagar pela nossa expansão quinhentista, funcionando como regulação de uma euforia desmedida e repondo os níveis de realidade histórica do nosso povo. É esta função primordial, em dissonância com a pena oficial dos cronistas do reino, que possibilita o revelar de uma outra verdade. Enterrarmo-nos até à cintura numa cova na areia, é ignorar a oblação humana que nos possibilitou a consciência do que somos por havermos sido os primeiros a descobrir novos mundos. Continuando a lucrar com os feitos do passado, resta-nos, como nação, esperar pela volta do círculo que nos levará «do pó que fomos ao pó que havemos de ser»[16].


[1] Cf. Luís Filipe Barreto, A Herança dos Descobrimentos in Biblioteca Digital Camões, Revista ICALP [em linha], 2009, p. 1. http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/revistas/revistaicalp/heranca.pdf [consultado em 2009-04-11].

[2] A Ínclita Geração é o nome dado por historiadores portugueses aos filhos do rei João I de Portugal e de Filipa de Lencastre. O epíteto refere-se ao valor individual destes príncipes que, de várias formas, marcaram a História de Portugal e da Europa. “Ínclita Geração”, in Wikipédia, A Enciclopédia Livre [em linha], 2009, http://pt.wikipedia.org/wiki/Ínclita_geração [consultado em 2009-04-14].

[3] Cf. Fernão Lopes, Crónica de D.João I, Caps. 157-158.

[4] Cf. António José Saraiva, A cultura em Portugal, Teoria e História, Livro I. Lisboa:Gradiva, 2007, pp. 112-113.

[5] A Conquista de Ceuta, cidade islâmica no Norte d’África, por tropas portuguesas sob o comando de João I de Portugal, deu-se a 22 de Agosto de 1415. “Tomada de Ceuta”, in Wikipédia, A Enciclopédia Livre [em linha], 2009, http://pt.wikipedia.org/wiki/Tomada_de_ceuta [consultado em 2009-04-14].

[6] Cf. Os Lusíadas (IV,100-101).

[7] Cf. António José Saraiva, A cultura em Portugal, Teoria e História, Livro I, Lisboa: Gradiva, 2007, p. 115.

[8] Ibidem, p.116.

[9] Cf. José Manuel Garcia, Algumas observações sobre a Literatura Portuguesa da Expansão in Biblioteca Digital Camões, Revista ICALP [em linha], 2009, p. 1. http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/revistas/revistaicalp/observacoes.pdf [consultado em 2009-04-11].

[10] Deve ter-se em conta alguns problemas relacionados com “uma segura identificação das edições existentes, de uma discriminação correcta e cientificamente justificada entre as edições autênticas e as falsas lançadas no mercado”. (Cf. Giulia Lanciani, Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII, Biblioteca Breve, Vol.41.  Amadora: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979, pp. 8-9).

[11] O autor do relato terá, provavelmente, recebido informações de Álvaro Fernandes, guardião do galeão. Foi pela primeira vez impresso entre 1555 e 1556 (Cf. Giulia Lanciani, Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII, Biblioteca Breve, Vol.41.  Amadora: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979, p. 11).

[12] Cf. António Sérgio, Ensaios, Tomo VIII. Lisboa: Sá da Costa, 1974, p. 155.

[13] Ibidem, p. 153.

[14] Como Deus tinha determinado.

[15] O que, em linguagem bem popular, se poderá designar por “sacudir a água do capote”.

[16] Cf. Padre António Vieira, Sermões.

BIBLIOGRAFIA

BARRETO, Luís Filipe – A Herança dos Descobrimentos in Revista ICALP.

GARCIA, José Manuel – Algumas observações sobre a Literatura Portuguesa da Expansão in Revista ICALP.
História trágico-marítima / Bernardo Gomes de Brito. – Barcelos : Companhia Editora do Minho, 1942. – 3 v. ; 20 cm. – (Nova edição / publ. sob a direcção de Damião Peres) http://purl.pt/191

 

LANCIANI, Giulia – Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII, Biblioteca Breve, Vol.41. Amadora: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979.

SARAIVA, António José – A cultura em Portugal, Teoria e História, Livro I. Lisboa: Gradiva, 2007.

SÉRGIO, António – Ensaios, Tomo VIII. Lisboa: Sá da Costa, 1974.